3 de maio de 2018 Maria Inês Assumpção Fernandes

 
A transmissão se inscreve nas raízes, no cultural, na história. Estamos sempre tecendo os vínculos no jogo simbólico que confere a todos nós um lugar na trama de relações de um grupo social.

Piera Aulagnier[1] (1923-1990) afirmava que um grupo social pode pronunciar um número indeterminado de enunciados, mas, dentre eles, ocupará um lugar particular a série de enunciados que definir a realidade do mundo, a razão de ser do grupo, a origem de seus modelos. Estes são os enunciados míticos, sagrados ou científicos que constituem o fundamento de todos os outros e que conferem a uma cultura suas marcas, sua identidade.

Apesar das diferenças que esses enunciados comportam, eles partilham de uma mesma exigência: a de dar condições para preservar a concordância entre o campo social e o campo do discurso; e são eles que, espera-se, devam ser recebidos pelo grupo, como palavras de certeza. Assim, o grupo social se reafirma bem antes de os sujeitos advirem como membros de uma comunidade; e pré-investirá os lugares que serão ocupados “na esperança de que esse sujeito transmita, de forma idêntica, o modelo sociocultural”.[2] Essa transmissão deve conter os valores e as interdições a serviço do bem comum; o sujeito, por sua vez, deverá encontrar nesse discurso referências para se projetar num futuro.

Ora, as grandes transformações sociopolíticas, econômicas, geográficas e dos meios de comunicação, que marcam a história do homem contemporâneo, têm abalado essas certezas e as fronteiras seguras na travessia subjetiva que cada um de nós deverá realizar para a ocupação desses lugares. O mal-estar decorrente expressa relações desordenadas e incertas que enfrentam, pelo desaparecimento do simbólico estruturante da vida social e cultural, um contínuo desafio. A afirmação cultural, como consequência do reconhecimento simultâneo do “nós” e do diferente, fica ameaçada. Os mitos, como formações culturais, perdem sua dimensão simbólica; o sagrado, como transcendência, anula-se pela superposição do Verdadeiro e do Real. A lei, que expressa o contrato no qual a coesão social é garantida, desintegra-se em afirmações parciais totalizadoras.

Os processos de transmissão, como afirma o psicanalista René Kaës[3] (1936- ), testemunham a necessidade de se elaborar a crise multidimensional que afeta os fundamentos e as modalidades da vida psíquica. Elaboração cujo propósito é dar inteligibilidade aos sofrimentos tributários dessas profundas transformações da estrutura das relações sociais e culturais.

Essa crise atinge a ordem das gerações e compromete as categorias da herança e da hereditariedade. A problemática da transmissão, assim, não mais se organiza somente como a dos significantes e dos desejos pré-formados e deformados que nos precedem, mas como a dos significantes gelados, enigmáticos, brutos, sobre os quais não foi feito um trabalho de simbolização. Dessa forma, nossa atenção não se volta unicamente à continuidade da vida psíquica, mas às rupturas, às falhas, aos hiatos não pensados e impensáveis, efeitos da pulsão de morte. Nesse caso, aquilo que Sigmund Freud[4] (1856-1939) chamou de aparelho de interpretar-significar (der Apparat zu deuten) falha em várias gerações.

Em realidade os processos e as circunstâncias que permitem a emergência da subjetividade na ordem das gerações delineiam um caminho de fracasso do trabalho de historização. O sujeito nesses descaminhos da filiação é um elo da cadeia geracional, mas não mais consegue tornar-se herdeiro.

 
Notas:

[1] Cf. Aulagnier, Piera. (1975) A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Tradução: Maria Clara Guimarães Pellegrino. Rio de Janeiro: Imago, 1979.
[2] Idem, ibidem, p. 147.
[3] Cf. Kaës, René. Os espaços psíquicos comuns e partilhados: transmissão e negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
[4] Cf. Freud, Sigmund. (1930) El Malestar en la Cultura. (1955) Sigmund Freud Obras Completas. Traducción directa del alemán: José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989, vol. XXI, p. 57-140.

 
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Maria Inês Assumpção Fernandes é professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com tese de livre-docência sobre Mestiçagem e Ideologia (2004). Docente desde 1977 no IPUSP, atuando na graduação e na pós-graduação, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão nas áreas de saúde mental, processos coletivos, grupais e institucionais, nestes últimos considerando-se famílias e casais, também coordena o Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO).