24 de dezembro de 2018 Luiz Ruffato

Para Ignácio de Loyola Brandão

 

Chegou na hora do almoço, sentou à mesa, e, antes mesmo de dar a primeira garfada, disse para a mãe, Vou sair da fábrica. A mãe, com o avental molhado da lavação de roupas, falou, surpresa, mas conformada, Se é esse o seu desejo, meu filho… E ambos, calados, mastigaram com pressa a comida. Para completar o orçamento doméstico, o filho agarrara na labuta desde quando completou quinze anos. Começou recolhendo serragem e toquinhos que sobravam da limpeza dos troncos que vinham de caminhão da Bahia e agora manejava desassombrado um torno de madeira. Os chefes gostavam dele, e ele orgulhava de olhar os móveis embalados que iam para longe e pensar que eles carregavam algo de seu suor. Porém, decidira, não queria mais trabalhar. A mãe apoiou, afinal cinco anos que ele acordava cedo e retornava tarde, todos os dias, inclusive aos sábados, sem nunca reclamar. Parte das férias vendia e o restante gastava arrumando a casa, substituindo telhas quebradas, limpando o quintal, pintando as paredes. Menino de juízo, a mãe suspirava, ao contrário do pai, sempre pulando de emprego em emprego. O filho era caseiro, obediente, companheiro. De pouco falar, abandonara os estudos, não acertava acompanhar as aulas à noite, mas compensava com a inteligência. Certa feita, o gerente escolheu ele para passar uma semana no Rio de Janeiro aprendendo a lidar com o maquinário novo que ia substituir o antigo. Trouxe presente para a mãe, um prato com o retrato do Pão de Açúcar, o bondinho, que não chegou a ver, não deu tempo, mas todo mundo falava, tão bonito… Mas agora anunciava, queria sair da fábrica. Era justo. Devia estar cansado. A mãe comunicou ao pai, o pai manifestou preocupação com o aluguel da casa, no Triângulo, mas a mãe, afugentando o gato que insistia em esfregar em suas pernas varicosas, lembrou, Deus supre. E o filho pediu demissão. Os chefes ficaram sem compreender, mas respeitaram a decisão. Querendo voltar, disseram, as portas estão abertas. Ele agradeceu e passou as primeiras semanas dormindo. Acordava de manhã, tomava café com pão com manteiga, voltava para a cama. A mãe evitava entrar no quarto, para não incomodar. Ele tornava a levantar, almoçava, e era nesse momento que ela, correndo, aproveitava para varrer o chão, ajeitar o lençol, escancarar a janela. Ele, mudo, se fechava de novo no cômodo até a hora da janta. Às vezes, a mãe ia espiar, e o observava deitado de barriga para cima, os olhos colados no teto, de tudo ausente. Depois, de uma hora para outra, rompeu a fumar. A fumar!, ele que não possuía vício algum… Empesteava o quarto com cheiro de cigarro, um cinzeiro improvisado sempre lotado de cinzas e guimbas. A mãe nada disse, embora tenha compartilhado com o pai a sua aflição. O pai resmungou, Deixa, mulher, é fase… Mas então ele, que não arredava o pé de casa, passou a demorar cada vez mais na rua. No começo, retornava, ranço de fumo e de álcool, antes das dez, horário que a vizinhança, todos operários das fábricas de móveis, se recolhia. Mas houve uma madrugada que a mãe, blusa esfiapada, encontrou-o caído numa calçada. Seu corpo mirrado amparou o corpo espigado do filho até a casa, tirou sua roupa, deitou-o, agasalhou-o com a coberta. Depois, sentou na sala, sozinha, o marido vendendo estatuetas de gesso no Vale do Aço, e chorou, baixinho. O quê que está acontecendo com você, meu filho?, ela perguntou, dia seguinte, na hora que ele despertou. Ele baixou os olhos, vermelhos de ressaca, e nada respondeu. A partir daquela noite, a mãe perdeu o sossego. Virava e revirava na cama, à espera do filho, que nunca chegava. Muitas vezes acompanhava o eco de seus próprios passos pelas ruas vazias, botequim em botequim, até deparar com ele, jogando sinuca ou cartas, na companhia de pessoas estranhas. Aturdido, o pai, que permanecia até quinze dias fora, balançava a cabeça, sem saber o que fazer. A mãe, cada dia mais triste, não conseguia entender aquela mudança extremada. Na véspera do Natal de 1981, o filho disse, Mãe, a senhora não merece isso. E desapareceu para sempre.

 
Imagem: Crossroads | [s.n.t.] | fotografia

Luiz Ruffato é autor de Eles eram muitos cavalos (Boitempo, 2001), Inferno provisório (Companhia das Letras, 2016), De mim já nem se lembra (Companhia das Letras, 2007) e da coletânea de contos A cidade dorme (Companhia das Letras, 2018), entre outros. Seus livros ganharam prêmios no Brasil (APCA, Machado de Assis, Jabuti) e no exterior (Casa de las Américas, em Cuba, e Hermann Hesse, na Alemanha) e estão publicados em onze países.