30 de abril de 2018 Cultura no Divã

 
A psicanálise na contemporaneidade vê-se desafiada a responder a situações em que os sujeitos sofrem perdas significativas na raiz mesmo da constituição do seu psiquismo, na subjetividade constituinte de sua história pessoal e “tribal” diante das cada vez mais frequentes ocasiões traumáticas que, mais do que gerar impessoalidade, geram um desmoronamento da subjetividade que resvala, como consequência, na própria noção de humano. Guerras, pobreza, perseguições, invasões, terrorismo são cada vez mais o enquadre da vivência de povos inteiros que acabam por ser desalojados, sobretudo de sua identidade e de sua História, e veem-se perdidos em diversas outras que não lhes pertencem e não lhes dão nem sustento nem esperança.

Jacques Lacan (1901-1981), quando formulou seu conceito das diferentes instâncias que se entrelaçam para constituir uma noção de subjetividade, buscou a metáfora do nó borromeano para ilustrar as interligações entre Real, Simbólico e Imaginário, que, envolvidos em liames que se cruzam, são a forma de se constituir o humano e suas intercorrências, ainda que  na alienação primeva do imaginário formado pelo “espelho” e na captura imposta pela linguagem e pela cultura. Esses são os andaimes que sustentam a existência intra e interpessoal e também o critério de pertinência a um grupo, um passado e um futuro.

O mundo contemporâneo promove, no entanto, cada vez mais eventos traumáticos, os quais, mais do que corroerem tais liames, na verdade os cortam tout court, deixando como resto um Real sem andaimes e com fios soltos tão desconexos quanto inúteis. História, referências de identidade familiar, profissional e econômica e suas significações são de uma hora para outra atingidas de modo que a memória social, o parentesco, a linguagem desses sujeitos de nada lhes servem diante da condição de “estrangeiro” – mesmo que no próprio país. Sem âncora para reconstituir o simbólico e o imaginário estabilizadores, só lhes resta o terror.

Esta é a contemporaneidade que desafia a psicanálise: o terrível cutelo que se abate de uma hora para outra e que rompe o nó borromeano, não para libertar, mas para criar órfãos de pátria e, sobretudo, de si mesmos.

 
Imagem: Cultura no Divã | Editorial # 3 | São Paulo | 2018 | fotomontagem

 
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