6 de dezembro de 2018 Maria Inês Assumpção Fernandes

As políticas públicas devem ter como tarefa ordenar as ações necessárias ao bem-estar social de uma comunidade destinando o poder de implementá-las às instituições. Nestas, a distinção entre as esferas do público e do privado, nelas resguardadas a dimensão histórica, deverá preservar e garantir direitos. As políticas públicas expressam, portanto, um processo político e coletivo visando assegurar direitos de cidadania. As instituições, por sua vez, devem garantir a entrada dos sujeitos num universo de valores partilhados no qual uma linguagem comum, fruto da interdisciplinaridade, deve se opor a qualquer tentativa de redução a uma linguagem única. Esses lugares institucionais e os processos que neles ocorrem, todavia, colocam o problema da alteridade, isto é, da aceitação do outro como sujeito pensante e autônomo, reconhecido pelos diferentes atores sociais, onde cada um mantém com o conjunto relações afetivas e vínculos de sociabilidade, como afirma Eugène Enriquez (1931- ).[1]

É nesse campo do encontro entre sujeitos, e das tensões que dele decorrem, que a psicanálise é convocada a contribuir tratando então de pensar, no âmbito dos processos institucionais, a relação entre o sujeito de direitos ─ o cidadão ─ e o sujeito do vínculo, o sujeito do inconsciente, e é nessa empreitada que ela deve reconhecer a determinação dos elementos que constituem esse tecido da sociedade: o clínico, o histórico, o cultural, o socioeconômico e o político.

Dessa maneira, a questão é complexa e urgente. Complexa porque sustenta e evidencia um jogo, nos processos institucionais, de emaranhadas relações de forças psíquicas, sociais e políticas, e porque esse jogo requer um exame multidisciplinar. Urgente porque é uma necessidade política e uma obrigação ética pensar nosso fazer cotidiano para nele localizar os efeitos dessas determinações decorrentes das organizações sociais e de suas ideologias.

Nosso horizonte está destinado a delimitar os âmbitos envolvidos na análise do problema e a encontrar possíveis brechas por meio das quais se ampliaria o entendimento da teoria e das ações propostas nos diferentes modelos teórico-técnicos que terão a tarefa de implementar as políticas. O propósito é repensar os problemas ligados às intervenções no cenário institucional deslocando-os do eixo que os evidencia sempre através do diálogo entre posições teóricas que apresentam soluções técnicas imediatas. Em relação a muitos desafios, as soluções técnicas produzirão apenas resultados paliativos que não enfrentam, porque não decodificam, os verdadeiros problemas.

O fundamental, nessa fronteira entre o universal dos direitos e o singular do vínculo, é poder operar a dimensão histórica dos processos institucionais. Mas o que seria o histórico? O histórico é aquilo que não é universal e aquilo que não é singular; entendendo-se que, para que não seja universal, é necessário haver uma diferença, e, para que não seja singular, é necessário que seja específico, que seja compreendido, que reenvie a um enredo, a uma trama.[2] O histórico é, portanto, alcançado quando se pode pensar e falar sobre o passado e o presente, individual ou coletivo, e transmiti-los numa narrativa. Nesse processo de historização seremos confrontados a construir, a descontruir e a reconstruir nossas narrativas para dar forma e sentido àquilo que, de outra maneira, seria somente caos. O humano, na verdade, como produção simbólica, necessita dessa fabricação ficcional da identidade e da alteridade.

Notas:

[1] Cf. Enriquez, Eugène. O trabalho de morte nas instituições. In: Kaës, René et al. A instituição e as instituições: estudos psicanalíticos. Tradução: Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991.
[2] Cf. Kaës, René. Transformations de la Problématique du Lien. Le Multiple, l’Hétérogène et le Singulier dans le Malêtre Contemporain. (Conférence, Séance Plénière 1). In: VIII CONGRÈS INTERNATIONAL DE L’AIPCF (Association Internationale de Psychanalyse de Couple et de Famille), Lyon, France, 26 juillet 2018.

Imagem: Junichi Hakoyama | Triangles | 2015 | Japão | Fotografia

Maria Inês Assumpção Fernandes é professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com tese de livre-docência sobre Mestiçagem e Ideologia (2004). Docente desde 1977 no IPUSP, atuando na graduação e na pós-graduação, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão nas áreas de saúde mental, processos coletivos, grupais e institucionais, nestes últimos considerando-se famílias e casais, também coordena o Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO).