5 de abril de 2018 Maria Inês Assumpção Fernandes

 
Hannah Arendt[1] (1906-1975) afirmava que as pessoas em situação de exclusão perdem não somente a liberdade mas o direito de agir; não somente o direito de pensar à sua maneira mas o direito de ter uma opinião.

A situação de exclusão expressa as dimensões de precariedade material e psíquica na qual vivem os indivíduos nos contextos sociais atuais – como produto dos processos de dominação política e econômica. Esses sujeitos abandonados nos processos de migração têm sacrificado em suas histórias familiares ou sociais a cultura do pai ou da mãe, de sua origem e de sua morada.

O que está em jogo nesses processos e que se mostra nas transformações de todas as culturas − intolerâncias raciais, étnicas, religiosas – é a exposição da diferença daqueles que não participam, conforme a expressão de Pierre Bourdieu (1930-2002), da “cultura legítima”,[2] isto é, da cultura dominante. A diferença cultural expõe, na migração, a alteridade insuportável; essa alteridade imaginariamente experimentada em termos de outra cultura, de outros costumes, outros fenótipos. Essa circunstância sociopolítica mostra que a dupla conjuntura, no que se refere ao interesse pela diferença cultural, seja pelo movimento mundial de migrações, seja pelos intercâmbios econômicos, estabelece claramente objetivos de conquista e de poder.

Diante desse quadro, o psicanalista Olivier Douville (1953- ) – no caminho de Arendt – nos convoca a pensar sobre as incidências subjetivas desses processos. O exílio, condição inexorável da existência, manifesta-se na fragilidade dos laços sociais, na mortificação do Nome, na segregação do corpo, na petrificação da língua. São gerações que vivem o ataque e a dilapidação do seu patrimônio simbólico pelo impossível da transmissão; trata-se de pensar os efeitos psíquicos desses exílios como efeitos de geração que se manifestam por um tempo indefinido que não remete a uma origem, como falhas de inscrição e de ligação entre o eu e o corpo, entre palavra e língua.

Se a construção do vínculo social pode ser entendida como inerente à sobrevivência e transmissão do registro da palavra de uma geração a outra, a situação de exclusão do migrante − e daqueles que estão à margem da cultura dominante − coloca em xeque o valor da palavra e o lugar da fala, ameaça a representação do corpo e ataca o sentido das origens. Como pode constituir-se um Sujeito se ele é referido ao indiferenciado da herança?

A herança reclama a transmissão e nós somos os tradutores daquilo que nos precedeu, afirma René Kaës[3] (1936- ). O legado social e cultural é continuamente tecido e transformado. A travessia das gerações implica poder sustentar o que nos é deixado como herança e transformá-lo, elaborá-lo cruzando a inelutável tensão entre a vida e a morte. Os processos migratórios e a violência da exclusão que lhes é inerente no mundo atual buscam operar com uma condição anômica de desidentificação na qual “o exílio material, histórico, econômico e político conduz ao impedimento do trabalho de exílio psíquico que faz de cada um de nós um herdeiro e um intérprete no jogo simbólico da transmissão”.[4]

A perda do código cultural compartilhado desses “pais em exílio”, em eclipse de Ser, evidencia a dimensão de ataque ao contrato narcísico que insere o sujeito na ordem familiar e social e os deixa “reduzidos a um olhar sem antecipação e a uma voz sem eco”.[5]
 
Notas:

[1] Cf. Arendt, Hannah. Les Origines du Totalitarisme. Paris: Quarto Gallimard, 2002.
[2] Cf. Bourdieu, Pierre. La Misère du Monde. Paris: Seuil, 1993.
[3] Cf. Kaës, René et al. Différence Culturelle et Souffances de L’Identité. Paris: Dunod, 1998.
[4] Douville, Olivier. De l’Exil à l’Exil Intérieur. In: Douville, Olivier et al. Clinique Psychanalityque de l’Exclusion. Paris: Dunod, 2012, p. 17; tradução da autora.
[5] Idem, ibidem, p. 26; tradução da autora.

 
Imagem: Raad Adayleh | Refugiados sírios na fronteira com a Jordânia | Síria-Jordânia | 2016 | fotografia

Maria Inês Assumpção Fernandes é professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com tese de livre-docência sobre Mestiçagem e Ideologia (2004). Docente desde 1977 no IPUSP, atuando na graduação e na pós-graduação, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão nas áreas de saúde mental, processos coletivos, grupais e institucionais, nestes últimos considerando-se famílias e casais, também coordena o Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO).