5 de julho de 2018 Maria Inês Assumpção Fernandes

 
As afirmações da filósofa Hannah Arendt (1906-1975), sempre insurgentes, nos convocam a uma inquietante indagação sobre igualdade, pluralidade e participação política. Ela expõe a condição humana pelo vértice da experiência de violência e a sobrevivência humana pelo eixo da participação na definição das leis que definem as regras do jogo civilizatório:

(…) na prática eu não posso entrar no jogo se não me submeter; meu motivo para aceitá-las é meu desejo de jogar; e uma vez que os homens só podem existir no plural, meu desejo de jogar é idêntico ao meu desejo de viver. Todo homem nasce numa comunidade com leis preexistentes às quais ele obedece, em primeiro lugar, porque não há outro meio de ele entrar no grande jogo do mundo. Posso querer mudar as regras do jogo, como fazem os revolucionários, ou abrir uma exceção para mim, como fazem os criminosos; mas negá-las, em princípio, não significa desobediência, mas a recusa a entrar para a comunidade humana.[1]

As condições em que vivemos e o mal-estar democrático mundial expressam, atualmente, essa dimensão de exceção própria a um funcionamento psíquico narcísico e criminoso; além disso, esse novo funcionamento de convívio comunitário evidencia que, para além da má distribuição de riquezas, estamos submetidos à decadência e ao abandono das instituições nas quais a desigualdade social e civil é mascarada por uma presumida legislação igualitária, como se a igualdade social e civil não pressupusesse pelo menos uma grosseira aproximação do que seja igualdade econômica. Milton Santos[2] (1926-2001) conseguiu mostrar, pela geografia humana, os efeitos de tal processo histórico marcado pelo mascaramento dessa desigualdade mediante as vestes da globalização que fragmenta o espaço urbano, desarticula o território e esfacela os laços sociais carregando nesse caminho a transformação das formas contratuais do vínculo. Essa transformação implica, de um lado, um ataque às formações metassociais que regulam e contêm as formações culturais e sociais, garantia da legitimidade das organizações sociais e dos princípios sobre os quais se fundam; e, de outro, um ataque às formações metapsíquicas – cumpridas pelas instituições ─ responsáveis por assegurar as funções de apoio, de sustento, de garantia e de enquadramento estruturante da vida psíquica e dos processos de subjetivação que, ao se enfraquecerem, não mais exercem suas funções. Paralisa-se, nesse itinerário perverso, o trabalho da cultura e o trabalho de simbolização.

Tal situação carrega um intenso padecimento porque trata-se do resultado dos processos de exclusão e desafiliação que incidem sobre os sujeitos do vínculo pela via da desqualificação social. Nesta, a fragilidade, muitas vezes associada ao fracasso, arruína as marcas da identidade que geram como efeito no campo social uma identidade de marginalizado. A partir daí, a dependência da assistência social e a identidade de assistido mostram um caminho de difícil retomada dos vínculos.

Esse processo de esfacelamento subjetivo, contudo, é portador de contradições. Assim, se “por um lado o território encontra-se fragmentado (…) por outro, estabelece como defesa o espaço da afetividade e da contiguidade, que é onde se dá a solidariedade, o trabalho comunitário, a contrarrede, a rede formada pelo morador, pelas ONGs, pela produção cultural realizada nas brechas da cultura da globalização”.[3] Esses sujeitos, no fio da esperança, como o tufo de flores de tártaro de Khadji-Murát[4] pisoteado por uma roda que lhe arrancou um pedaço do corpo, revolveu-lhe as entranhas e lhe decepou um braço, mantêm-se erguidos, numa aliança inconsciente de resistência ao poder destruidor, sem se entregar aos homens que já destruíram seus irmãos. É dessa aliança que brota a resistência, desfilando a cooperação, a solidariedade, a camaradagem. No fio da navalha há um fio de esperança.

 
Notas:

[1] Arendt, Hannah. (1969) Crises da República. Tradução: José Volkmann. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 165.
[2] Cf. Santos, Milton Almeida dos. A urbanização desigual. Petrópolis: Vozes, 1980.
[3] Cf. Broide, Jorge. Adolescência e violência: criação de dispositivos clínicos no território conflagrado das periferias. Revista Psicologia Política, v. 10, n. 19, jan. 2010. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2010000100009>.
[4] Cf. Tolstói, Lev. (1912) Khadji-Murát. Tradução: Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2017.

 
Imagem: Banksy | Les Misérables | Londres | 2016 | graffiti

Maria Inês Assumpção Fernandes é professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com tese de livre-docência sobre Mestiçagem e Ideologia (2004). Docente desde 1977 no IPUSP, atuando na graduação e na pós-graduação, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão nas áreas de saúde mental, processos coletivos, grupais e institucionais, nestes últimos considerando-se famílias e casais, também coordena o Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO).