28 de junho de 2018 Cultura no Divã

 
Não há como fugir da impossibilidade de a tudo controlarmos. Em uma análise de sonhos, em algum momento chegaremos a um lugar que Sigmund Freud (1856-1939) chamou de “umbigo dos sonhos”,[1] lugar onde significações e significações em signos e imagens associativas irão advir de forma inesgotável, sem jamais chegar a um fundo. Há um limite na “significação dos sonhos” (Traumdeutung), uma parede de linguagem contra a qual nos jogamos sempre, condenados a buscar sempre alguma representação do “mágico rébus” que é o sonho. E quando o enigma que chamamos inconsciente se nos apresenta, Freud recorre aos Pais da língua, da poesia e da literatura; quando o imponderável e inominável fala, é a voz de William Shakespeare (1564-1616) que ali é convocada para se colocar junto ao homem ordinário.

Haverá, pois, um fundo n’Isso (Es) que é por natureza indecifrável, irredutível e ao qual nada pode ser reduzido. E quando os elementos do mundo sensível a ele fazem apelo, somos jogados nos limites da sensibilidade que se confundem com os mais dolorosos pesadelos, e, então, emerge a insocorridade, a Hilflosigkeit. O homem, lançado na sua insocorridade radical, é “o sem medida” que se coloca diante de seus restos. E os restos, na maior parte de nossa existência, nos levando a sempre demandar por sua infortunada sutura, são Isso, e também algo mais ali que quase sempre deixamos de considerar. É o vazio, esse lugar insaturado de onde nossas palavras nascem como flores, e, junto delas, poetamos e nos redescobrimos como desejo.

E que lugar mais centrípeto do que o da arte e do amor para topar de frente com o resto, o vazio que se coloca diante de nós, atônitos, e nos interpela dizendo: “Queres ver algo? Ah, então vejas Isso”, como nos mostrou admiravelmente Jacques Lacan[2] (1901-1981) ao interrogar a função de “a” diante da obra Os embaixadores (1533) de Hans Holbein (1497-1543) – onde o objeto “a”, como lugar insaturado, se coloca como um resto no olhar próprio da obra de arte que vem e salta presentificando o sujeito.

Se a arte contemporânea constrói suas anamorfoses liberadas dos pré-juízos do passado, é porque ela aprendeu com os seus restos a escutar para além do simples ouvir, a dizer para além do simples falar, e a ver para além do simples olhar.

E o resto, como um lugar insaturado da falta radical no Homem, continua ─ como no jogo entre Poros e Pênia, as figuras míticas paternas de Eros ─, no fundo de si, produzindo sempre algo novo e inesperado.

 
Notas:

[1] Cf. Freud, Sigmund. (1900) A interpretação dos sonhos. Tradução: Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2013, 2 v.
[2] Cf. Lacan, Jacques. (1964) O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução: M.D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

 
Imagem: Cultura no Divã | Editorial # 5 | São Paulo | 2018 | fotomontagem

 
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