1 de novembro de 2018 Maria Inês Assumpção Fernandes

 
A afirmação de Didier Anzieu (1923-1999) é, no mínimo, instigante: “é de toda formação o que Aristóteles havia reconhecido em todo governo. Não existe regime político perfeito em si; um tipo de governo responde melhor que outros, num dado momento, a um conjunto de condições geográficas, demográficas, econômicas e culturais dadas; mas todo tipo de governo, o mais adaptado que seja a essas condições, comporta germes de corrupção e tende a evoluir de si mesmo em direção a formas degradadas da vida política. Assim nascem, morrem e se transformam as puericulturas, as pedagogias, as concepções de formação de adultos, as retóricas”.[1]

Compreendendo a formação como inerente à constituição subjetiva, Anzieu nos convoca a pensar sobre a complexa e arriscada interação entre a construção de um projeto social/institucional e os modelos de formação a ele vinculados. As questões envolvidas na formação de adultos e nos modelos que proliferam hoje em dia são de diversas ordens. Elas dizem respeito à formulação de políticas em educação, às diferenças de implementação institucional, à conjuntura econômica. Os projetos de formação continuada e de formação técnica voltadas para o desenvolvimento de ações em instituições públicas, por exemplo, enfrentam o desafio de ampliar o acesso a novas tecnologias e sustentar o rigor necessário no processo de transmissão do conhecimento.

Sabemos que, do ponto de vista psicanalítico, toda formação que se propõe como fim a compreensão de si e dos outros encontra objeções. Estas evidenciam que a formação pressupõe que o saber e o saber fazer, na transmissão dos quais ela se organiza, vão funcionar nas pessoas formadas, independentemente de sua organização subjetiva.

Temos clareza que as fantasias captam, alteram ou paralisam os processos perceptivos e de cognição. A aventura formativa, nesse sentido, supõe a libertação do sujeito da posse dos objetos de fantasia sobre seu desejo. Para tanto, nessa experiência, a distância entre o desejo de satisfação e a satisfação obtida em realidade deve ser reduzida.

Essa redução e as garantias que ela traz passam pela descoberta e pela aquisição de uma técnica e pelo manejo de instrumentos de cuja utilização o próprio sujeito foi formado.[2] Assim, a assimilação da técnica – efeito esperado da formação nas instituições – é decorrência de um complexo processo de assimilação e elaboração o qual supõe que a formação torne possível o reconhecimento e o tratamento da demanda dos sujeitos em sua relação com a realidade psíquica, social e material.

Transitar entre um modelo técnico, ou seja, apoiado nas identificações conscientes que permitem um domínio sobre a realidade externa, e um modelo fantasmático, com a indispensável consideração da realidade interna, contemplando as identificações inconscientes, a dramatização do conflito entre desejo e defesa, leva-nos a operar sobre as perversões das formações as quais, nascidas de um dinamismo criador, se corrompem em aprendizagens, contentam-se com um saber fazer desprovido da crítica do saber. Em realidade, como efeito da formação teríamos mudanças não de paradigmas e de atitudes, senão de crenças. Como afirma Anzieu,[3] toda atividade de formação comporta uma face de trabalho e uma contraface de ilusão. A ilusão é tão inevitável quanto o trabalho, mas é somente porque perseguimos a primeira que nos engajamos no segundo.

 
Notas:

[1] Anzieu, Didier. Fantasme et la Fantasmatique de la Formation Psychanalytique. In: Kaës, René; Anzieu, Didier; Thomas, Louis-Vincent. (1973) Fantasme et Formation. Paris: Dunod, 1984, p. 120; tradução da autora.
[2] Kaës, René. Désir de Toute-puissance, Culpabilité et Épreuves dans la Formation. In: Kaës, René; Anzieu, Didier; Thomas, Louis-Vincent. (1973) Fantasme et Formation. Paris: Dunod, 1984, p. 90.
[3] Cf. Anzieu, Didier. Op. cit.

 
Imagem: Miriam Paternoster | Inspired by Matisse Cut-Outs | Itália | 2014 | colagem (interferências nossas)

Maria Inês Assumpção Fernandes é professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com tese de livre-docência sobre Mestiçagem e Ideologia (2004). Docente desde 1977 no IPUSP, atuando na graduação e na pós-graduação, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão nas áreas de saúde mental, processos coletivos, grupais e institucionais, nestes últimos considerando-se famílias e casais, também coordena o Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO).