25 de outubro de 2018 Luiz Palma

 
O que se quer despertar com o repto do título são alguns paradoxos que repousam no campo da estética ou, mais propriamente, no regime específico de identificação da arte. Historicamente, camadas de especulações estéticas sobre determinada obra de arte trazem mais indeterminações do que algum esclarecimento e, por vezes, se põem em disputa com a originalidade da própria criação do artista. Na atualidade, esse risco acentua-se com o paroxismo de uma curadoria contingente sob a qual a obra corre o risco de ser devorada por uma representação de si mesma ou mesmo por um sentido alheio ao seu a priori. Classicamente, as artes respondem às leis da mimesis, tidas como anacrônicas para correntes pós-modernas, mas reconhecidas por universalistas kantianos como importante prescrição teórico-analítica, pois define na obra uma relação pontuada entre uma forma de fazer, a poiesis, e uma forma de ser, uma aisthesis – pela qual a criação é afetada. Mas, sob um céu nada platônico do “hoje em dia”, percebe-se o destino da arte a cada vez como uma experiência inquietante a espelhar ou a provocar ainda mais as incertezas do que mais parece ser o instante perpétuo em que estamos.

De outro lado, o espectador passou a ser seduzido por um instigante caleidoscópio de possibilidades que busca conduzi-lo a uma experiência sensível ou altamente performática diante da estranheza do puro princípio criativo, aquele a priori da arte: o intento sem intenção. Seja no museu ou no espaço arte-mercado da galeria, esse é um encontro em que a unidade da obra de arte acha-se cindida por um peculiar corte estético que faz de uma mesma persona, no caso o circundante, o sujeito e o predicado. Essa fissura não impulsiona contradições progressivas, mas conduz a um fazer e desfazer lúdico e figurativo pareando um e outro – obra e espectador. Nessa descontinuidade há momentos privilegiados em que ocorrem condensações e possíveis fusões entre dois instantes que, antes separados, juntam-se para formar uma nova intensidade na qual o princípio criativo do artista ainda poderá se materializar entre o espectador e sua verdade. Ou não.

Desde sempre, as fricções entre cultura e arte geram calorosas tensões, sobretudo demarcadas no campo político e, bem sabemos, no religioso. Em 1977, Herbert Marcuse (1898-1979), em seu último ensaio,[1] retoma a alienação como um dado constitutivo da civilização, mas não deixa de atribuir-lhe alguma positividade. Sua argumentação crítica põe em suspeição a conexão de arte e classe social como valor estético de conteúdo libertário, reforçando a autonomia da arte perante as relações sociopolíticas sem, no entanto, deixá-la estéril ou indiferente aos processos de superação das formas de opressão, uma vez que a potência da arte residiria na capacidade de revogar o monopólio da realidade estabelecida. Nessa ruptura o mundo simbólico da arte ilumina outra realidade ao desnudar a figuração ideológica do sistema econômico dominante, visto que sua autonomia é prenha do imperativo categórico: “as coisas têm de mudar”.[2]

O regime estético também não está imune aos paradoxos da civilização tecnológica, cuja sedução ilusionista tende a rebaixar ainda mais os objetivos transcendentes da cultura, eliminando ou reduzindo sua força original de antagonismo. A assimilação sem contraste de trabalho e ócio, assim como de criatividade e automação, são exemplos de redução dos vetores culturais a simples indicadores do existente sobre o espírito. Nesse universo, a mesma arte que ora interroga segue em risco de se dar desvanecida como dócil objeto de consumo e entretenimento.

No entanto, com ou sem a ruptura histórica anunciada como pós-modernidade, parece precipitado apontar um recuo significativo de sua contradição original, pois a arte insiste em anunciar-se como o infante do estranhamento do mundo, até porque o regime estético opera no paradoxo em que a arte é arte na medida em que é também não arte. Essa feliz não coincidência consigo mesma atinge o presente, que bem pode deixar de ser o mesmo para se tornar também outro, novo, e quem sabe alçar o devir no contemporâneo.

 
Notas:

[1] Cf. Marcuse, Herbert. (1977) A dimensão estética. Tradução: Maria Elisabete Costa. Lisboa: Edições 70, 2007.
[2] Idem, ibidem, p. 22.

 
Imagem: Luiz Palma | Transgressão | São Paulo | 2002 | óleo sobre tela (recorte)

Luiz Palma é psicólogo social e artista plástico. Graduado em Psicologia pela Universidade São Marcos (USM-SP), é mestre e doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ex-dirigente da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e ex-diretor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (ESP), atualmente compõe o quadro técnico da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Nos anos 1980, criou em São Paulo o Astrolábio Ateliê, espaço de criação, exposição e convívio entre público e artistas. Na arte, responde a um expressionismo próprio, seja na pintura ou nas colagens-texto, referidas como “sínteses provisórias”. Autor de Arte e Psique – um poder sem majestade, no prelo.