4 de outubro de 2018 Maria Inês Assumpção Fernandes

Abordar a problemática da diferença exige uma delicada atenção.[1] Em primeiro lugar, porque o pensamento sobre a diferença, em psicanálise, tem conduzido a um exigente processo de reflexão sobre os valores da diferença na constituição da realidade psíquica; em segundo lugar, porque desvela o entendimento de como a diferença está no coração da constituição subjetiva, delimitando as fronteiras, marcando os contrastes, definindo as possibilidades de interação, constituindo aquilo que dará contorno à estruturação psíquica e à construção da integração narcísica e das identidades; e, por último, porque implica enfrentar os desafios inerentes ao processo de diferenciação no campo psíquico e no campo social, compondo as divisas da interioridade e da exterioridade, a fim de descobrir o sujeito da ação, o sujeito da palavra, o sujeito da história.

Abordar o problema da dimensão institucional no atendimento à diferença exige uma redobrada atenção. A instituição é uma criação do socius e, como tal, uma formação social que participa dos processos de produção e reprodução dos modos de ser e de operar na comunidade, na esfera do coletivo. Nesta, ocupa um lugar ao organizar as tarefas consideradas socialmente necessárias e seus correlatos com vistas ao cumprimento de funções exigidas para o controle social: representações da tarefa da instituição, estrutura das comunicações requeridas, atribuição de papéis ajustados à grande rede social e hierarquias funcionais.[2] A instituição é um dispositivo econômico, submetida a normas e ao investimento de capital; ela produz valores e distribui poderes; é organizada num quadro jurídico que regula as relações intra e interinstitucionais. Assim sendo, o projeto que ela engendra, para que se mantenha, supõe o exercício de um poder político.

Nesse cenário, como pensar a clínica e a construção de dispositivos – de intervenção – que possam estar à escuta das diferenças e cientes do poder político-institucional ao qual o processo de diferenciação – tanto no campo psíquico quanto no campo social – está submetido?

A herança foucaultiana nos permite, por vezes, considerar inúmeras práticas institucionais legitimadas como expressão dos saberes constituídos no campo dos cuidados nas instituições. O que Michel Foucault (1926-1984) nos adverte, contudo, no que nomeia como atividade genealógica, diz respeito “aos efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa”.[3] Por isso, a defesa da insurreição dos saberes não se refere a uma reivindicação à ignorância ou a prestigiar a experiência imediata não capturada pelo saber constituído, mas à necessidade de ativar os saberes locais, descontínuos, não legitimados para que abram novos caminhos e mantenham o alerta aos efeitos desse poder.

Estamos diante de uma complexa arquitetura que demanda o conhecimento teórico-clínico e a consciência da equação saber x poder que envolve as práticas institucionais. A construção de dispositivos clínicos, portanto, exige nosso questionamento e nossa atenção. Qual dispositivo? Para qual demanda? Ora, o dispositivo é instituído; ele não é a realidade; e tem uma finalidade e um sentido que o marcam e que lhe são inerentes. Não podemos tratá-lo como se fosse revestido de uma natural neutralidade.  Pensá-lo exige compreender a função do trabalho psíquico nele e por ele produzido e o sistema de decodificação ou de interpretação nele concebido. Fortalecidos dessa prudência, conseguiremos acessar as formas do cuidar atento às diferenças e enfrentar o dilema dessa equação entre clínica e política.

Notas:

[1] Este artigo refere-se parcialmente à participação em mesa intitulada Figuras da diferença e dispositivo psicanalítico de grupo, II COLÓQUIO DA REDE INTERUNIVERSITÁRIA GRUPOS E VÍNCULOS INTERSUBJETIVOS e I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE CASAL E FAMÍLIA, 18 a 20 abr. 2018, São Paulo.
[2] Cf. Kaës, René. (1996) Souffrance et Psychopathologie des Liens Institués. In: Kaës, René et al. Souffrance et Psychopathologie des Liens Institutionnels. Paris: Dunod, 1996.
[3] Foucault, Michel. (1979) Microfísica do poder. Tradução e Organização: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2001, p. 171.

Imagem: Annie King | For Real | EUA | [s.d.] | tinta acrílica sobre tela

Maria Inês Assumpção Fernandes é professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com tese de livre-docência sobre Mestiçagem e Ideologia (2004). Docente desde 1977 no IPUSP, atuando na graduação e na pós-graduação, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão nas áreas de saúde mental, processos coletivos, grupais e institucionais, nestes últimos considerando-se famílias e casais, também coordena o Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO).