8 de outubro de 2018 Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt

 
Já foram repetidas inúmeras vezes – talvez, ainda não o suficiente – as palavras de Jacques Lacan (1901-1981)[1] a respeito da importância de o analista “alcançar o horizonte”, ou de que “conheça a espiral que o arrasta”, na subjetividade de sua época. O desenho das táticas e do pensamento clínico do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt, atuante na Praça Franklin Roosevelt, no centro de São Paulo – bem como das diversas iniciativas de psicanálise na rua que comparecem no Brasil[2] –, está comprometido com esse esforço, a partir da colocação do arcabouço teórico, clínico e político da psicanálise diante dos avanços reacionários contemporâneos.

Cumpre ressaltar que o engajamento político, caso se torne um imperativo, pode configurar uma falaciosa imaginarização de um “Outro do Outro”,[3] ou seja, uma “metalinguagem” da própria clínica. Isso desvirtuaria uma clínica que se orienta pela valorização das singularidades e diferenças de cada sujeito. O comprometimento político, portanto, não deve se prestar a “formar militantes” ou “esclarecer consciências”, por implicar sentidos prévios. Isso seria outra forma de dominação, incorrendo naquilo que uma experiência psicanalítica pretende combater. Nesse sentido, esclarece Sigmund Freud (1856-1939),[4] é preciso atentar ao risco de “transformar” o sujeito em uma “propriedade” do analista, “a conformar seu destino, impor-lhe nossos ideais”. Não obstante, apostamos na vocação que a escuta do inconsciente sustenta ante o atravessamento da subjetividade pelo neoliberalismo. Nessa medida, o que implica sustentar uma clínica engajada com os processos de subjetivação de sua época?

A produção clínica do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt articula-se com a potência territorial de uma praça. Há uma aproximação possível da noção de ambiente com a noção lacaniana de semblante,[5] enquanto agente de um discurso, ou seja, uma agência que permitirá a emergência de uma verdade que não pode ser dita por inteiro, mas que se articula num dizer. O que se opera nessa aproximação de semblante com o ambiente da praça é, portanto, um elemento que pode fomentar a produção de significantes como um arranque, uma partida para um trabalho do inconsciente, implicado com o que a praça suscita.

Do semblante da praça, encontra-se uma escuta imersa na heterogeneidade de um coletivo de analistas, cada qual um “ambiente”. Nesse espaço, os atendimentos ocorrem por ordem de chegada e conforme os analistas que ali se encontram. O dispositivo apresenta a possibilidade da rotatividade: um sujeito poderá ser atendido por diferentes analistas a cada vez. Tal rotatividade impõe uma série de impasses. Verificamos que a transferência pode se dar com traços específicos de cada analista ou com um analista especificamente. Além disso, pode ser com a praça ou com o grupo, todos esses como significantes quaisquer que engendram uma transferência.

As situações clínicas se estabelecem mediante a transferência e são discutidas no coletivo, permitindo um direcionamento sobre o atendimento: 1. por todos, 2. por alguns, ou 3. por apenas um analista. Dessa maneira, a rotatividade não se apresenta como um imperativo, mas uma possibilidade que se articula pelo desejo do sujeito, do analista e da escuta do coletivo. Essa amplitude tática apresenta valiosos efeitos terapêuticos e analíticos, mantendo a prevalência da transferência enquanto estratégia.

Outro ponto nevrálgico se relaciona à descentralização do dinheiro como precondição para o atendimento. Contudo, isso não implica gratuidade, visto que mesmo o transporte até a praça pode constituir-se como impeditivo e servir como um “amoedamento libidinal”.[6] Não se trata de desconsiderar a importância do dinheiro como operador clínico, mas uma aposta em outras formas de articulação de desejo e gozo para cada sujeito. Portanto, não se trata de filantropia, doação ou caridade, posturas que trazem efeitos de dominação, contrários à ética psicanalítica.

No ambiente/semblante praça, sem a precondição do dinheiro e com a possibilidade da rotatividade e fixação de analistas, esse coletivo se sustenta: heterogêneo, vivendo e pulsando conforme as vozes singulares que o compõem, sem pretender, com isso, uma “inovação” da clínica psicanalítica. Antes, com essas apostas na experiência estamos, porventura, sendo partícipes – por meio da apropriação da “espiral que nos arrasta” – da constituição das subjetividades de nosso tempo?

 
Notas:

[1] Cf. Lacan, Jacques. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 237-324.
[2] Para citar algumas experiências: Psicanálise na Rua, que ocorre no CONIC e na Rodoviária do Plano Piloto (Brasília, DF); Clínica Pública de Psicanálise, na Vila Itororó, e Clínica Aberta de Psicanálise, na Casa do Povo (São Paulo, SP).
[3] Cf. Lacan, Jacques. (1968-1969) O seminário: Livro 16. de um Outro ao outro. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[4] Cf. Freud, Sigmund. (1919) Nuevos Caminos de la Terapia Psicoanalítica. (1955) Sigmund Freud. Obras Completas. Traducción directa del alemán: José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989, v. XVII, p. 151-164.
[5] Cf. Oury, Jean. (1986) O coletivo. Tradução: Antoine Ménard, Clara Novaes, Karina Montmasson e Maria Dubena. São Paulo: Hucitec, 2009.
[6] Cf. Slemenson, Karin de Paula. $em?: sobre a inclusão e o manejo do dinheiro numa análise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

 
Imagem: Projeto Design | Praça Franklin Roosevelt | São Paulo | 2013 | fotografia

Augusto Ribeiro Coaracy Neto é psicólogo, psicanalista, membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt... | Thiago Oliveira é cientista social, psicanalista e membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt... | Adriana Marino é psicanalista, membro do Fórum da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL-BR), do Psicanalistas pela Democracia, e do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt...