6 de setembro de 2018 Maria Inês Assumpção Fernandes

“Se amanhece o sol, a todos aquenta; se chove o céu, a todos molha. Se toda luz caíra a uma parte e toda tempestade a outra, quem o sofrera? Mas não sei que injusta condição é a deste elemento grosseiro em que vivemos, que as mesmas igualdades do céu, em chegando à Terra, logo se desigualam.”[1]

A reflexão de Padre Antônio Vieira (1608-1697) nos convoca a pensar a produção social das desigualdades e das diferenças, o sistema de valores que as sustentam e os efeitos ameaçadores delas decorrentes. As redes sociais, no mundo contemporâneo, exibem essas diferenças e mostram a construção de um ideário social e político que evidencia a convergência e a divergência de concepções, que mais se assemelham a crenças, cuja adesão ou contraposição revelam um cenário assustador. O que está em jogo nessas produções são, ao mesmo tempo, os ídolos e as ideologias.

Sabemos que a proposta de se fazer uma reflexão sobre a ideologia no campo da psicanálise não foi tarefa de pouca envergadura. Sigmund Freud (1856-1939) a pensou, como função social, em seus textos entre os anos de 1927 e 1932 que exigiram uma elaboração especulativa construída fora do quadro da clínica psicanalítica clássica. Essa árdua tarefa, apenas iniciada nesses trabalhos, enfrentava os desafios de reconhecer uma conexão entre o psíquico e o social, o que, por sua vez, exigia repensar as relações entre o psíquico e o biológico. Os psicanalistas que o seguiram e outros que a ele se opunham, realizariam ─ do ponto de vista metapsicológico ─ a reflexão que deveria colocar em evidência as formações intermediárias entre as estruturas endopsíquicas e as estruturas do social. Dentre esses psicanalistas foi Wilhelm Reich (1897-1957), em sua obra Psicologia de massas do fascismo,[2] que alcançou um novo degrau na superação desses desafios, por intermédio de sua teoria da ideologia.

Na esteira do materialismo dialético que influenciava o pensamento na Europa e que dispunha da potência do modelo marxista de ideologia, a psicanálise nas primeiras décadas do século XX, na realidade, procurava por uma psicologia política que pudesse dar conta do “fator subjetivo da história”. Isso supunha enfrentar a compreensão marxista da ideologia, como um processo de formação do sistema de ideias (na classe dominante do capitalismo) em relação à função que ela cumpre na divisão social e no antagonismo das classes. Como formação material e histórica, ela refletiria a posição dominante de uma classe e barraria o acesso à consciência da verdade sobre as relações sociais levando à radicalização de oposições, como entre o bom e o mau, o falso e o verdadeiro. Dessa forma, a ideologia seria uma falsa consciência.

Recentemente, na esteira das reflexões sobre o mal-estar nos tempos atuais, em que a inflexibilidade e a rigidez manifestas nos debates em redes sociais nos assombram, a reflexão psicanalítica sobre a função psíquica da ideologia, e as alienações que ela gera, é retomada. René Kaës (1936- ), desde 1980, se debruçava sobre a análise da consistência psíquica da ideologia, os processos de sua formação e as funções que ela cumpre. O modelo do Aparelho Psíquico Grupal, de 1976, já esboçava seus delineamentos que, posteriormente, se organizarão como “posição ideológica que se define por uma certa configuração de fantasmas, de identificações e de mecanismos de defesa que produzem uma formação psíquica caracterizada pela potência total da ideia, pela influência das funções do Ideal e pela figura obsedante e tirânica do Ídolo (do fetiche)”.[3] Expressão atual de subjetividades: a posição ideológica, apoiada em bases do psiquismo infantil, fundada na necessidade de uma explicação universal sob o princípio de causalidade única, sinaliza uma visão de mundo coerente que fornece todas as respostas a todos os enigmas com os quais somos confrontados!

Notas:

[1] Vieira, Antônio. Sermões, III, 1, 1642, p. 157, apud Bosi, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 129.
[2] Cf. Reich, Wilhelm. (1933) Psicologia de massas do fascismo. Tradução: Maria da Graça M. Macedo. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
[3] Kaës, René. L’Idéologie. Paris: Dunod, 2016, p. vii.

Imagem: Dawn Nelson | A Way Out | EUA | [s.d.] | pintura

Maria Inês Assumpção Fernandes é professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com tese de livre-docência sobre Mestiçagem e Ideologia (2004). Docente desde 1977 no IPUSP, atuando na graduação e na pós-graduação, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão nas áreas de saúde mental, processos coletivos, grupais e institucionais, nestes últimos considerando-se famílias e casais, também coordena o Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO).