10 de setembro de 2018 Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt

 
A história do processo de urbanização moderno está estreitamente vinculada ao processo de industrialização. As cidades são formadas e formatadas pelas demandas econômicas e políticas[1] que conduzem a organização dos espaços e das relações que neles ocorrem. Citando Michel Foucault (1926-1984),[2] “torna-se uma questão de usar a disposição do espaço para fins econômico-políticos”, servindo às manifestações do poder: a divindade, a força e os objetivos econômico-políticos. A cidade é estruturada de forma a organizar e conduzir as relações sociais.

O avanço da lógica conservadora no Brasil, sustentada pelo discurso fascista e calcada na segregação social, se dá atrelado à força do discurso neoliberal. Surge aqui a discussão sobre privatização dos espaços públicos, delegando a preservação e o cuidado ao poder do capital e não à própria comunidade. Sendo assim, o espaço público e de direito a todos passa a ter acessos e utilizações restritos de acordo com prerrogativas estabelecidas por interesses privados e passa a ser direcionado a grupos que se identificam por características predeterminadas. Se o espaço é privado e não mais de todos: é privado em favor de quem? Em detrimento de quem? Há, nesse mecanismo, a lógica da gentrificação.

A escolha da praça Franklin Roosevelt, localizada no centro de São Paulo entre as importantes avenida Consolação e rua Augusta, para a atuação clínica do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt não foi por acaso. Imbuída de sentido histórico e político, importante espaço de permanência e convívio social da comunidade paulistana, é um dos mais simbólicos espaços (desejavelmente) democráticos da cidade. Nesse sentido, consideramos que merece destaque ao se pensar a vida na praça como termômetro da democracia no Brasil, ou, pelo menos, em São Paulo.

Na história, as praças têm função fundamental na organização da vida na pólis, desde as ágoras gregas. Inseridas numa equação tempo x espaço, são sempre imbuídas de sentido político. Não por acaso, observa-se que seus usos mantêm-se atrelados à ideologia preponderante de uma época: as possibilidades de permanência e as atividades culturais são mais intensas em respiros democráticos,[3] a ideia de democracia está profundamente atrelada à noção do público.

Atualmente, a característica democrática desse espaço encontra-se ameaçada por forças conservadoras e gentrificadoras. Ameaça que só tomou força por causa da atual conjuntura sociopolítica, enfaticamente desde o golpe parlamentar de 2016, e das forças privatizadoras, que se fortaleceram a partir de então.

Diante disso, a escuta do sofrimento no espaço urbano configura uma forma de fazer resistência. Isto é, partimos do pressuposto de que o sofrimento possui uma dimensão sociopolítica e, desse modo, a escuta pode engendrar transformações subjetivas, sem perder de vista a singularidade da experiência vivida por cada um.

Vivemos na sociedade do consumo, das formas muradas de existência, do automatismo cotidiano e da vida mensurada pelo produtivismo. É a própria experiência de estar com o outro que se encontra em jogo nesse momento, pois cada vez mais vivemos um modo de vida solitário, encerrados em nós mesmos. Nas palavras de Michel Bousseyroux,[4] comentando o discurso do capitalista[5] de Jacques Lacan (1901-1981), trata-se da construção de “laços associais”, em detrimento de laços propriamente sociais.

Torna-se urgente a retomada do sentido grego das praças como ágoras: dos espaços públicos que verdadeiramente pertençam a todos de forma igualitária, das praças como local de permanência e de interações entre as diversidades sociais. Trata-se da retomada dos espaços públicos como palco de encontros e de afetos na cidade. Nesse sentido, a experiência da psicanálise no espaço urbano tem muito a contribuir, isto é, para uma acepção de “público” atinente aos paradoxos da atual conjuntura.

A escuta na praça é uma aposta que busca romper com um uso utilitarista e consumista que se faz da vida na cidade, produzir fissuras nos modos hegemônicos de habitar o espaço urbano. Todos os sábados, das 11h às 15h, cadeiras colorem a praça, dando outro tom para os encontros que ali acontecem, contrapondo-se às narrativas que perpassam a solidão. Psicanalistas colocam suas escutas na praça, sem o imperativo do dinheiro como mediação desses encontros – sem pretender fazer doação, caridade ou filantropia, mas animados pelo desejo de resistência à massificação neoliberal.

 
Notas:

[1] Cf. Cardoso, Celina. O palco da praça: as transformações na Praça Franklin Roosevelt pelas mãos do teatro. Extraprensa, São Paulo, v. 3, n. 1, 2009. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.11606/extraprensa2009.77144>.
[2] Foucault, Michel. (1977) The Eye of Power. In: Gordon, Colin (Ed.). Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings. 1972-1977. New York: Pantheon Books, 1980, p. 148; tradução dos autores.
[3] Cf. Itagiba Fonseca, Maria Cristina. Sentidos urbanos em construção: o concreto ruído d’uma praça que passa-e-fica. Psicanálise na Praça Roosevelt, 29 mar. 2018. Disponível em: <https://www.facebook.com/notes/psicanálise-na-praça-roosevelt/sentidos-urbanos-em-construção-o-concreto-ruído-duma-praça-que-passa-e-fica/351968291956838/>.
[4] Cf. Bousseyroux, Michel. Práticas do impossível e teoria dos discursos. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 101-112, jan.-jun. 2012.
[5] Cf. Lacan, Jacques. (1972) Du Discourse Psychanalytique: Discours de Jacques Lacan à l’Université de Milan le 12 mai 1972. In: Contri, Giacomo (Ed.). Lacan in Italia 1953-1978. En Italie Lacan. Milan: La Salamandra, 1978, p. 32-55.

 
Imagem: Inauguração da Praça Franklin Roosevelt | São Paulo | 1970 | fotografia

Maria Cristina Itagiba Fonseca é psicóloga, membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt... | Daniel da Silva Taranta é psicólogo, psicanalista, membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt... | Augusto Ribeiro Coaracy Neto é psicólogo, psicanalista, membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt... | Adriana Marino é psicanalista, membro do Fórum da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL-BR), do Psicanalistas pela Democracia, e do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt... | Juliana Tambelli é psicóloga, psicanalista, membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt... | Ana Be Vasconcelos é psicóloga, psicanalista, membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt... | Ana Carolina Perrella é psicóloga, psicanalista, membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt...