7 de junho de 2018 Maria Inês Assumpção Fernandes

 
As identificações normativas e estruturantes ─ que permitem o acesso do sujeito às regras da cultura e lhe mostram o que é proibido ou prescrito a fim de que sejam garantidas a sua existência como ser autônomo e a do grupo como comunidade histórico-cultural ─ são a mediação necessária à construção da identidade e à formação dos ideais. Contudo, as condições que elas supõem apoiam-se nas alianças – conscientes e inconscientes ─ contraídas em relações intersubjetivas nas quais a comunicação e a transmissão se entrelaçam definindo o que deve ser comunicado e o que deve ser encoberto, o que deve ser revelado e o que deve permanecer oculto.

Claude Chabrol[1] (1930-2010), analisando a comunicação, adverte-nos sobre a omissão e a ocultação de informações e ações realizadas presentes ou passadas, como um fenômeno corriqueiro que pode levar, sem dúvida, a uma pathologia da atividade comunicacional. As palavras falsas sobre a realidade do mundo, discursos construídos para gerar efeitos indiretos de sedução ou de medo, ações coletivas cuja finalidade é transitória e a racionalidade que ela supõe visa a uma utilidade imediata. Há sempre, nessa medida, uma forma de violência no partilhar informações marcando fronteiras para aquele que consegue compreendê-las porque pertence ao grupo e pode saber e para aquele que está fora dele, o estrangeiro, excluído da possibilidade de entendimento e de decifração dos sentidos da comunicação.

Contudo, as razões para se manter uma coisa escondida são múltiplas. Em 1917, Sigmund Freud[2] (1856-1939) afirmava que a manutenção de um segredo é condição geral e constante de toda possibilidade de pensamento: preservar esse nó secreto para ser e pensar. Evocava, dessa forma, a necessidade de preservação de um espaço de segredo inconfessável, mesmo a si próprio, evidenciando a face negativa de si, a irredutível contraface do silêncio na palavra.

“O segredo que representa de uma só vez um continente e um conteúdo resulta de uma operação intrassubjetiva entre aquilo que pode ser levado ao conhecimento de todos, tornar-se propriedade de todos, num movimento de excreção, e aquilo que é ‘bem’ próprio, pessoal que deve ficar guardado e ignorado, num movimento de retenção e de conservação.”[3] Essa afirmação de Jacqueline Lanouzière (1930- ) mostra que há, no segredo, uma dupla operação de separação, de divisão intrapsíquica e intersubjetiva; a primeira se dá no espaço da interioridade e a segunda no espaço público. Pode-se concluir que, da separação intersubjetiva, decorre uma consequência: entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem, estabelecem-se relações de poder e cumplicidade. É neste ponto que se constituem as cadeias de segredo na sincronia de gerações.

Os segredos inconfessáveis, incestos, estupros, crimes ou malversações diversas vão gerar um trabalho psíquico sobre as gerações futuras, que os herdam sem o saberem. Segredos sempre negados que estão na origem de sintomas, que algumas pessoas sofrem, pela inclusão de um corpo estrangeiro, de um morto do qual elas são a “sepultura”, onde a “existência de um cofre” é a prova suficiente de um acontecimento “real”.[4]

Por qual processo nos tornamos portadores de um segredo que ignoramos? Como nos chega essa herança, é a pergunta. A construção dessa cripta parece decorrer da transmissão de vazios, de buracos, lacunas no discurso. Não temos saída: “escondidos no oco de jogos interditos, de sensações e de impotências inconfessáveis, de lembranças e reminiscências guardadas por sentimentos de vergonha e de culpa, a herança vai recair sobre aquele que se tornará portador do segredo de um outro”.[5]

 
Notas:

[1] Chabrol, Claude. Communication Secrète et Communication Démocratique. Conexions: Le Secret, n. 60, p. 9, 2. sem. 1992.
[2] Cf. Freud, Sigmund. (1917) Un Recuerdo de Infancia en Poesía y Verdad. In: (1955) Sigmund Freud Obras Completas. Traducción directa del alemán: José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989, vol. XVII, p. 137-150.
[3] Lanouzière, Jacqueline.  Histoire Secrète de la Séduction sous le Règne de Freud. Paris: PUF, 1991, p. 23; tradução da autora.
[4] Rouchy, Jean-Claude. Réceptacle d’un Secret: Jeux Interdits. Conexions: Le Secret, n. 60, p. 60, 2. sem. 1992.
[5] Idem, ibidem, p. 70; tradução da autora. 

 
Imagem: Danny Boyle | T2 Trainspotting |UK | 2017 | divulgação

Maria Inês Assumpção Fernandes é professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com tese de livre-docência sobre Mestiçagem e Ideologia (2004). Docente desde 1977 no IPUSP, atuando na graduação e na pós-graduação, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão nas áreas de saúde mental, processos coletivos, grupais e institucionais, nestes últimos considerando-se famílias e casais, também coordena o Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO).