1.
Constatação: a superfície da alma para a dor é muito maior do que para a felicidade.
Alma velha, lasseada — limites que só aumentam. O coração não está vazio, poucas vezes esteve, e nele não sobra muito lugar — exceto para a dor, que parece se enfiar por tudo como um prodígio.
Prezássemos a qualidade do próprio amor, tivéssemos um pouco de piedade, talvez o que sangra em dor minguasse. Mas não: o que faz idosos nossos corpos não fez bondosos nossos ânimos.
Amor oferecido por quem sequer amamos é também ameaça: espera retribuição.
Melhor amar nossas dores — joias incondicionais e suficientes.
2.
Fazer de conta que aquele era um homem bom.
Uma pele que era pura luz, poros dos quais manava uma claridade que já era milagre, fulguração que forçou a moça a pedir: me olha, me toma, me faz esperança.
A moça pensou que havia vivido até ali para se fartar da demasia que ele era.
O excesso: a luz da pele, alvura quase transparente, opala desenhada em carne, pedra preciosa de morder.
Ela flutuou em transe quando teve nas pálpebras a visão dele, o desejo afogado na única maneira possível — um sol queimando na garganta, lágrimas candentes, luz sem alívio, e só calor.
Ele não era boa pessoa, no entanto.
Tiveram ambos que morrer secos, sós e frios.
3.
Meu coração desceu as escadas da dor. Ao fundo, um impossível poço de água tão fria e escura.
Meu coração decidiu levantar paredes para guardar tua ausência: caiadas, brancas, virgens de cor.
Meu coração quis limpar o ar para suavizar as horas sem ti: fresco, fino, novo.
Meu amor me salvará do oco negro que sou na hora extrema sem ti.
Imagem: Shutterstock | Sad Boy | [s. l.] | 2016 | fotografia