31 de maio de 2018 Cultura no Divã

 
A experiência é a forma que nos envolve na perspectiva do tempo, espaço e o outro. Toda uma tradição de pensamento existe a partir dela e sobre ela. Situado no presente, o humano contempla seu passado como restos, como fragmentos, sempre buscando lhe emprestar um sentido – caminhamos rumo ao futuro olhando para o passado, situados no aqui e agora. O tempo é dimensionado, tecido, envolvido pelas múltiplas narrativas, e hoje, mais do que nunca, ele se encontra historicizado em uma “temporalização da história”, na qual ao mesmo tempo se acelera e se torna, por vezes, segmentado e inumano. Contudo, a temporalização da história é também a temporalização da experiência.

De fato, nesse caldo que é a imersão em múltiplas experiências, a tessitura dos vínculos no jogo simbólico situa a todos nós no lugar da produção contínua de uma trama de relações que resultam em falares que esculpem a realidade vivida. Diferentes dizeres que partilham uma mesma experiência. Assim, historicizado, o hoje é o tempo da memória que constrói e reconstrói significações. A temporalização da história irá sempre ressignificar o coração (kern) traumático que nos ronda e nos sussurra.

E no tempo da experiência, na sua vivência e para mais dentro dela, encontramos uma Erfahrung, uma “experiência transformadora”,[1] e, no interior da experiência, em seu turbilhão tudo “que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve”,[2] em um movimento de vaivém no qual a desconstrução caminha no sentido da construção, da Bildung (formação pessoal) como construção histórica presente no horizonte de toda e qualquer Deutung (interpretação) como significação do Sujeito. Nesse contexto, somos conduzidos por um caminho no qual a experiência de linguagem se faz algo vivido consigo e através do outro, se abre em um espaço de linguagem em que não se afigura a ordinária experiência de falatório com os semelhantes, mas o silêncio que se abre como experiência de escutar o outro em toda a sua impossibilidade e imponderabilidade. A experiência de uma análise é uma experiência transformadora, uma Erfahrung, na qual se marca um antes e um depois na superfície do Sujeito.

Com efeito, aventemos, ainda, a questão de um mundo atual, dentro de seu tempo, e na historicização da experiência que trama a tessitura de nossos laços, a constituição de um mundo pós-edipiano, problematizado pelas transformações sofridas no interior da teoria psicanalítica de Sigmund Freud (1856-1939) a Jacques Lacan (1901-1981). Questão que coloca para a reflexão os destinos de nossa cultura, em que passamos do contrato pactuado a duras penas para a eliminação da diferença e a absolutização do eu narcísico no horizonte da pulsão de morte. Se for isso mesmo, a experiência vivida será somente aquela dos “empresários de si mesmos” e o fim da esperança, bem como a morte da cultura ocidental como a conhecemos.

 
Notas:

[1] Cf. Gadamer, Hans-Georg. (1960) Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997. Gadamer é o filósofo que agradece a Lacan por este ter-lhe ensinado a verdadeira força transformadora da palavra.
[2] Lacan, Jacques. (1972) O aturdito. In: (2001) Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 448. A frase de Lacan em francês é: “Qu’on dise reste oublié derrière ce qui se dit dans ce qui s’entend”.

 
Imagem: Cultura no Divã | Editorial # 4 | São Paulo | 2018 | fotomontagem

 
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