27 de setembro de 2018 Cultura no Divã

 
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”[1] Esse importante trecho da história do pensamento do Ocidente poderia muito bem ter sido escrito por um psicanalista, como Sigmund Freud (1856-1939), Wilhelm Reich (1897-1957), Otto Fenichel (1897-1946) ou Jacques Lacan (1901-1981), por exemplo. Mas ele foi escrito pelo filósofo Karl Marx (1818-1883), entre 1851 e 1852, e publicado na obra O 18 de brumário de Luís Bonaparte. A ideia é de que em momentos significativos o sujeito humano, ao invés de dar um passo à frente e revolucionar a si e as coisas, o mundo, é submetido às vozes do passado e sucumbe à alienação.

Marx escreve o 18 de brumário cinquenta anos após o filósofo Antoine-Louis-Claude Destutt (1754-1836), o conde de Tracy, ter proposto, em 1801, no centro histórico das convulsões da Revolução Francesa (1789-1799), o conceito de ideologia como organizador de uma espécie de ciência das ideias.

Será, no entanto, com Louis Althusser[2] (1918-1990) que o conceito de ideologia estabelecerá relação com a psicanálise de Freud e de Lacan, conceito este resultante da ação do inconsciente e de processos de identificação do sujeito humano. De modo que o recalque e os horizontes do eu ideal e do ideal do eu são motores ativos na produção das ideologias. A ideologia como promotora de estruturas normativas de identificação, como proposto por Althusser, entretanto, irá associar-se à ideia da “tradição como um opressivo pesadelo”, como aventada por Marx – sendo aqui que o filósofo alemão se encontra com Freud. “O passado, a tradição da raça e do povo, vive nas ideologias do supereu e só lentamente cede às influências do presente, no sentido de mudanças novas; e, enquanto opera através do superego, desempenha um poderoso papel na vida do homem, independentemente de condições econômicas”, afirma Freud.[3] E ei-lo, afinal, o grande ideólogo silencioso, e na verdade assaz loquaz, o supereu.

Vale lembrar, contudo, que no horizonte da psicanálise a palavra tem seus resultados – ela faz estalar o sujeito. E, de fato, Marx e Freud já nos indicaram os meandros obscuros de nós mesmos nesses momentos em que estamos “empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu”[4] promovendo revoluções para deixar o estado das coisas tal como elas estão.

Em tempos absolutamente sombrios, tais teses encontraram um limite nas paredes mais duras da contemporaneidade: o fascismo e o nazismo, nos quais a liberdade da palavra do sujeito e do outro é banida. A repetição que nos assola, para além de sua apresentação como tragédia ou como farsa, precisa ser analisada continuamente. Estar desatento ao Isso é correr o risco de sucumbir ao lado mais sombrio de nós mesmos.

 
Notas:

[1] Cf. Marx, Karl. (1852) O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
[2] Cf. Althusser, Louis. (1970) Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tradução: Joaquim José Moura Ramos. Lisboa: Presença, 1974.
[3] Cf. Freud, Sigmund. (1933) 31ª Conferencia: La Descomposición de la Personalidad Psíquica. In: (1955) Sigmund Freud Obras Completas. Traducción directa del alemán: José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989, v. XXIII, 1989, p. 53-76; tradução nossa.
[4] Cf. Marx, Karl. Op. cit.

 
Imagem: Cultura no Divã | Editorial # 8 | São Paulo | 2018 | fotomontagem

 
Editoriais Anteriores