20 de setembro de 2018 Giovanna Bartucci

 

1.

É verdade, é difícil conceber tal pensamento. No entanto, o que se desenha é a condição de reconhecer o outro na sua diferença e, ainda assim, amá-lo, privando-se de roubá-lo, tomá-lo para si no mais recôndito de sua violenta paixão.

Pare, por um momento, pare. Você saberia dizer por que o ama? Você saberia dizer por que o seu corpo pede o corpo dele, por que o olhar dele desenha o corpo seu e as palavras dele acariciam a pele sua? Você saberia dizer por que a voz dele faz de manto amoroso sobre o corpo seu, grávida que está deste amor, receptáculo dos investimentos dele?

Você saberia dizer por que o tempo não faz registro quando estão juntos, por que a saudade toma o seu corpo por inteiro quando estão separados? Você saberia dizer por que o cotidiano é prazeroso, por que as desavenças tornam-se problemas a serem resolvidos e, ainda, por que o corpo dele carrega aquele nome e sobrenome? Seriam infindáveis as listas que escreveríamos, infindáveis as buscas pela palavra justa capaz, então, de dizê-lo.

2.

Com certeza, mais fácil será dizer por que não amamos. É nesse momento mesmo que sabemos, minuciosamente, identificar as faltas, as falhas, as inadequações, os desatinos amorosos que o tornam insuficiente, desqualificá-lo naquele lugar mesmo no qual o conhecemos tão bem, capturá-lo com palavras que tornem mais fácil a separação…[1]

3.

Sim, de fato, mas há também a possibilidade de permanecer. Assim como fez Ignacio,[2] que não tinha conhecimento de que Julia fora (era), um dia (também), Oscar, quando a conheceu em uma praça, na véspera de Natal, décadas atrás.

Tendo realizado a sua cirurgia de reatribuição sexual em 1993, somente em 2005 é que Julia terá a sua identidade de gênero reconhecida pelo Estado uruguaio. Afinal, após mais de duas décadas de vida em conjunto, amor e companheirismo, Julia, 66 anos, e Ignacio, 76, poderão se casar. “Cientificamente, tem que existir o homem e a mulher, para que não haja solidão, ou um medo de solidão. E ele necessitava do apoio de alguém, e eu necessitava do apoio de um homem. Para sentir-me mulher necessitava do apoio de um homem (…)”, reflete Julia, ao rememorar o período em que se conheceram.

O que surpreende, contudo, no que diz respeito a Ignacio, é que os aspectos ideológicos associados ao seu narcisismo – no caso, as suas representações de si mesmo – e a uma cultura do masculino não o impediram de vivenciar uma experiência amorosa em que não correspondesse, inicialmente, identidade sexual e eleição de objeto, ou identidade (sexual) e amor. Sim, Ignacio sofria e pensava: “Estou morando com alguém do meu próprio sexo, isto não está certo”. De modo que concordou que Oscar se submetesse à operação de mudança de sexo porque também “queria ter em sua casa uma mulher. (…) Sair com ela, apresentá-la aos seus amigos, como mulher, não como era antes. (…) Eu não podia aceitá-lo, no meu jeito de ser, sentia-me envergonhado”.

Ainda assim, se cabe ao complexo de Édipo estabelecer a relação entre sexualidade e amor – uma vez que as renúncias pulsionais autoeróticas se instituem por amor ao objeto –, é importante marcar que a capacidade de amar um outro, seja como semelhante, mas também como alteridade, implica fazer referência à condição amorosa de cada sujeito, e não de cada objeto de amor.

4.

De fato, a descoberta do amor é tanto incestuosa quanto transgressiva.[3] Incestuosa na medida em que não há sujeito que preexista à relação com seus pais, sendo no contato com esses pais, movido pela sua sexualidade e pelo seu ódio a eles, que o sujeito se estrutura de determinada maneira. Transgressiva, por outro lado, enquanto o sujeito persevere na manutenção desse “enredo imemorial”, furtando-se a novos e inesperados encontros.

Mas não parece ter sido este o caso de Ignacio. Se não existe estado amoroso que não reproduza “protótipos infantis”, parece ter sido por meio (da capacidade) de uma eleição de objeto paradoxal, reconhecidamente aqui tanto amorosa (uma vez que reconhece a alteridade) quanto “idêntica” (“alguém de meu próprio sexo”), que Ignacio encontrou um espaço vital que lhe permitiu a (ampliação da) constituição de sua própria subjetividade, por meio do exercício de amar tanto a um “semelhante” quanto a um outro-alteridade.

 
Notas:

[1] Bartucci, Giovanna. (2002) Almodóvar: o desejo como universo – ou, Ata-me!: Ensaio sobre o amor. In: Fragilidade absoluta: ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade. São Paulo: Planeta, 2006, p. 111. O presente artigo foi elaborado com base no ensaio aqui citado.
[2] Julia Brian e Ignacio González são tema do documentário El Casamiento (Aldo Gray, URU | ARG, 2011, 70′, color.), que narra a história de amor e companheirismo entre ambos, culminando no dia de seu casamento.
[3] Cf. Birman, Joel. (1998) A gramática do amor pelas suas estórias. Cadernos de Psicanálise. Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ), Rio de Janeiro, v. 14, n. 17, p. 12-31, 1998.

 
Imagem: Casado | Segredo do inconsciente 10 | Recife | [s. d.] | óleo sobre tela

Giovanna Bartucci é psicanalista. Ph. D., é membro efetivo paulista da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). Professora doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduz as seguintes linhas de investigação: Novos Paradigmas e Método – Acerca da Psicanálise no Contemporâneo, e Psicanálise e Estéticas de Subjetivação – Cultura e Constituição de Subjetividade. Autora de Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), Prêmio Jabuti 2014 (categoria Psicologia e Psicanálise, 3º lugar); Fragilidade absoluta – ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta), entre outros. Com traduções de ensaios seus publicadas na França, na Bélgica, no Canadá e na Argentina, atua como assessora e consultora ad hoc para editoras e revistas especializadas.