25 de junho de 2018 Alcino Leite Neto

 
Por sua característica visual, o cinema tem grande dificuldade para expor o fluxo do pensamento, que é no mais das vezes verbal. O cinema clássico tentou solucionar esse problema fazendo com que o personagem manifestasse suas ideias em viva voz ou por meio da voz “off” (equivalente à “voz interior”). Outra solução foi transformar o conteúdo do pensamento em uma série de imagens, como se o pensado fosse uma representação dominantemente visual, à maneira do sonho.

O cinema moderno, com todas as liberdades que introduziu na construção das imagens e narrativas ao colocar em xeque a representação do sujeito e da ação, buscou outras soluções para o problema. Manteve, porém, a predominância das formas anteriores, recorrendo – mesmo quando buscou fazer uma versão cinematográfica do literário “discurso indireto livre” – ainda à voz “off” e à exposição imagética do pensamento. Houve ainda quem utilizasse a projeção sem imagens, com a tela escura, para que o espectador se atentasse apenas ao fluxo das palavras pronunciadas.

Eis por que é tão difícil para o cinema filmar o processo criativo de um escritor ou de um poeta – bem mais que o de um pintor, por exemplo. Por ser o primeiro marcadamente verbal, ao confrontá-lo o cinema costuma esbarrar nos limites de sua própria expressão (arriscando, eu diria que é também por isso que os filmes encaram duro impasse ao tentar expor o andamento de uma análise).

O problema se agrava quando o filme deixa o domínio da prosa e se aventura no da poesia. Poetas, em geral, só interessam ao cinema se sua vida é bastante romanesca – apta a ser transformada em um drama cheio de som e de fúria. É tarefa muito difícil para um filme “dar a ver” o lento e meticuloso processo mental de elaboração de um poema. E, normalmente, em filmes protagonizados por poetas, os versos são apresentados (quando o são) já prontos, recitados pelos personagens em “on” ou em “off”.

Paterson (EUA|FR|GER, 2016, 118’, color.), de Jim Jarmusch, é a mais nova tentativa do cinema – e, creio, a mais bem-sucedida até agora – de narrar o “drama” de um poeta com as palavras. Para dar conta dessa tarefa, Jarmusch optou por um personagem cuja vida é absolutamente comum: Paterson trabalha como motorista de ônibus, acorda sempre à mesma hora, deita-se sempre à mesma hora e faz todo dia as mesmas coisas. A regularidade de seu cotidiano e a banalidade que o cerca liberam o filme para aprofundar seu objetivo principal, que é a questão da criação poética.

Com a leveza de um mestre do cinema, Jarmusch consegue filmar esse difícil enfrentamento das imagens com o pensamento verbal ao fazer com que a elaboração do poema ganhe “corpo” no filme por intermédio de sucessivas reiterações dos versos pelo personagem, da procura obsessiva pela palavra justa, da laboriosa construção poética, que se alonga no tempo, desdobrando assim a duração do filme em processos mentais quase indiferentes à progressão da ação.

Paterson é o oposto do poeta visionário movido por uma paixão irrefreável, ou do poeta dândi, avesso à vida corriqueira, ou do poeta rebelde, que optou pela marginalidade social. É um personagem devotado ao trabalho, inclusive das palavras. E cuja poesia nasce não de um sentimento recôndito ou de uma inspiração celestial, mas do esforço incansável com o verbo e da atenção discreta e obsessiva que dispensa ao cotidiano e seus signos, às coisas, às paisagens, aos animais e à fala do outro – que são a matéria-prima de sua criação.

É nesse ponto que o filme, além de sua notável investigação do processo criativo de um poeta, adquire um valor extra, ao situar Paterson na contramão das concepções idealizadas do artista e do exibicionismo espetaculoso que este é sempre convidado a ostentar.

 
Imagem: Jim Jarmusch | Paterson | EUA|FR|GER | 2016 | divulgação

Alcino Leite Neto é jornalista, crítico de cinema e editor da Três Estrelas, editora do Grupo Folha. Na Folha de S.Paulo, foi editor dos cadernos Ilustrada e Mais!, repórter especial e correspondente em Paris. É formado em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com tese sobre o diretor italiano Roberto Rossellini.