26 de abril de 2018 Bernardo Ajzenberg

 
Foram quatro longos meses de reformas, seção por seção, com um cronograma apertado e jamais cumprido; cartazes espalhados por todo o estabelecimento, alertas, avisos, comunicados sempre renovados. Ao final das obras, os clientes voltando aos poucos, o mais importante para Catarina continuava ali: a iluminação eficaz, límpida, como as luminárias frias e implacáveis dos dentistas. Pois o maior dos temores de Catarina, quando as mudanças foram anunciadas pelo supermercado, era perder o grande momento de suas visitas semanais àquele canto particularmente refrigerado no meio do qual ficava instalada a gôndola dos ovos, momento tão incontornável quanto dependente, em absoluto, de uma iluminação que aos seus olhos era perfeita.

No dia da reabertura, em pleno inverno – portanto, vestida com seu sobretudo marrom-claro, que aos olhos dos funcionários lhe conferia um ar nobre, sóbrio, aristocrático –, portando a velha sacola azul de pano puído, dando seus passinhos lentos e prudentes de idosa, ela avançou à procura deles, sem saber se estariam de fato no mesmo lugar. Estavam, o que a fez sorrir discretamente.

Pôs a sacola vazia no chão de linóleo – não precisou se abaixar, pois não tinha nem um metro e meio de altura – e deu início à inspeção. Nunca pegava as caixas de ovos maiores. Como morava só, preferia as que continham no máximo seis exemplares. Esse ritual se repetia semanalmente havia anos, sempre na mesma loja.

Abriu a primeira e, segurando-a com a mão esquerda, tirou, como sempre, o ovo encaixado no receptáculo superior esquerdo da embalagem e o fez girar sobre si mesmo para poder examiná-lo, servida por aquela iluminação que quase não produzia sombras, milímetro por milímetro. Faria o mesmo com o segundo, seguindo, como sempre, o sentido horário na escolha de cada exemplar.

A iluminação naquele supermercado, com efeito, sempre possibilitara uma inspeção minuciosa e certeira. Cada ovo levava um minuto, em média, para ser avaliado. Enquanto o fazia, ela pensava, de maneira mais ou menos turva: é preciso saber a origem das coisas, qualquer coisa; é preciso estar convencido daquilo que será adquirido, pois foi assim que ela mesma tinha sido educada, durante os períodos de penúria. Ao mesmo tempo, refletia sobre a sensação que sempre tomava conta de seus dias apenas alguns anos antes, quando ainda era casada e o marido, adoecido, vivia a reclamar de dores e da falta de dinheiro: uma sensação de frustração, uma vontade de explodir. Nesses momentos, enquanto ouvia os sussurros resfolegantes do homem, sentia vontade de ser uma astronauta e se incorporar numa missão prolongada de alguma agência espacial, para estar fora do mundo; ou pensava em ser uma alpinista e subir até algum pico do qual talvez não voltasse; ou, ainda, uma navegadora, para dar a volta ao mundo; ou, quem sabe, uma mergulhadora, para perscrutar as profundezas de um outro universo.

Já estava na terceira caixa de ovos quando tomou a decisão: nenhuma delas servia; nenhum dos ovos que havia examinado tinha condições de adentrar a sua casa; ora estavam pesados além da conta, ora com algumas sardas ou manchinhas suspeitas, ora ligeiramente deformados; e a maioria apresentava uma cor distante daquela que ela conhecia tão bem e que refletia os tons da natureza. Nenhum deles nem sequer se aproximava da perfeição que os ovos de verdade têm. E Catarina, neta de camponeses sulinos, sabia do que estava falando.

Refletindo, intrigada com a situação, se deu conta de que a tal nova iluminação, conquanto válida, não era exatamente igual à que existia antes ali. Parecia muito mais intensa, brilhante, forte, muito mais implacável, muito mais fria. No caixa do supermercado, obteve a informação de que a nova iluminação era, de fato, bem mais potente do que a anterior. Ainda mais rascante, portanto, permitindo-se ver as mercadorias como realmente eram (a moça do caixa que lhe deu a explicação se orgulhava desse avanço). Desiludida, considerando a hipótese de que nos anos anteriores talvez jamais havia enxergado os ovos como realmente eram, Catarina se despediu e deixou o estabelecimento com a sacola azul vazia e a certeza de que nunca mais conseguiria comprar um único ovo naquela loja.

 
Imagem: Cultura no Divã | A iluminação perfeita | [s.l.] | 2018 | fotoedição

Bernardo Ajzenberg, escritor, tradutor e jornalista, é autor de Carreiras cortadas (Francisco Alves, 1989), Efeito suspensório (Imago, 1993), Goldstein & Camargo (Imago, 1994), Variações Goldman (Rocco, 1998), A gaiola de Faraday (Rocco, 2002, prêmio de Ficção do Ano da Academia Brasileira de Letras), Homens com mulheres (Rocco, 2005, finalista do prêmio Jabuti), Olhos secos (Rocco, 2009, finalista do prêmio Portugal Telecom), Duas novelas (Rocco, 2011), Minha Vida sem Banho (Rocco, 2014, Prêmio Casa de las Américas 2015) e Gostar de ostras (Rocco, 2017).