26 de julho de 2018 Bernardo Ajzenberg

 
Se estivesse a bordo de um helicóptero, sobrevoando os campos, ele certamente poderia vê-la correndo no meio do milharal. Mas não dispunha de um helicóptero ou de um drone equipado com câmeras. Por isso, ela, tendo uma estatura inferior à das plantas que formavam aquele imenso colchão verde e móvel, podia se dar ao luxo de zanzar sem destino e sem ser observada, como vinha fazendo havia pelo menos uma hora e como gostaria de poder fazer sempre, para sempre. Como se mergulhasse em um poço horizontal, com potenciais trajetórias talvez menos complexas que as de um labirinto –afinal, bastaria seguir em linha reta, ou supostamente reta, sem parar, que daria em algum momento em outro terreno, em alguma barreira, algum fim ─, mas com uma intensidade táctil e aromática infinitamente superior.

A imensa plantação era, claramente, o seu esconderijo, o seu refúgio – ao menos na época do ano em que estava mais desenvolvida. Quando queria fugir dele, quando não cabiam mais na sala da pequena casa de campo, ela se embrenhava no verde, correndo o risco de arranhões, picadas de insetos, quedas, o golpe de um ou outro animal assustado que vagasse perdido por ali.

Casa de campo talvez não seja o nome apropriado, pois remete a veraneio, hospedagem temporária. Era, mais, uma pequena casa de fazenda, onde moravam havia quase um ano, desde a falência do comércio que mantinham em Araraquara e que lhes dera bons rendimentos durante quase duas décadas. Uma ex-casa de campo, portanto, tornada residência.

Por que sentia essa necessidade de fugir? Por que a sufocava, às vezes, a presença dele? Na cidade, havia inúmeras outras atrações – a ida ao supermercado e à feira, o clube, as duas amigas, o trabalho como voluntária na associação de defesa dos animais. Além disso, havia as atividades dele: tênis três vezes por semana, um indefectível chope com os amigos na sexta-feira à noite. Mas, agora, ali no campo, sozinhos sob as estrelas, eram obrigados a conviver um com o outro quase ininterruptamente.

Se ele se sentia bem, fazendo alguns negócios com o uso da internet, administrando as tarefas dos três funcionários, ela nitidamente se entediava e, pior do que isso, sentia-se inferiorizada, sentimento inédito em seu relacionamento. Se ao menos tivessem tido filhos, teria outras dezenas de tarefas e obrigações que até mesmo a obrigariam a sair da fazenda regularmente.

O milharal era o seu consolo. E a única referência de localização, em meio à planície, era o velho poste de madeira acinzentada, vestígio de uma antiga rede elétrica que em algum momento passara por ali. Isolado, no meio da plantação. Ela gostava de chegar a esse ponto, onde um pica-pau muitas vezes também aparecia, martelando a um ritmo sempre regular. Em alguns momentos de angústia multiplicada, ela se agarrava ao velho tronco, abraçava-o; por vezes, chegava a apertá-lo contra si tomada pela luxúria, por uma fome bíblica, esfregando partes do corpo na superfície dura, cilíndrica e lisa. E, cumprido o intervalo de isolamento, acabava voltando para a casa, de alguma forma renovada.

Após quatro episódios de desaparecimento, alguns meses depois de terem mudado para lá, ele entendeu as necessidades dela, o sentido da fuga, o significado, para ela, do calor do milharal. E deixou, por isso, de reprimi-la, como fizera antes, por deixá-lo, como de fato acontecera nas vezes anteriores, tão preocupado.
Ele ainda estava na cidade, excepcionalmente ─ movido por algum motivo que ela desconhecia, mas que supunha, na verdade estava convicta, que tinha a ver mais com as carências que ambos compartilhavam do que com a necessidade de visitar uma agência bancária como ele alegara ─, quando olhou para o céu e viu súbito a tempestade se armando, escura, densa, para os lados da fazenda. Uma torrente de cores e sons assustadores.

Teve tempo apenas de chegar ao milharal, acompanhado de dois funcionários, para encontrá-la grudada ao poste enegrecido e ao corpo do terceiro camponês, ambos nus e fulminados pelo mesmo raio.

 
Imagem: Cultura no Divã | Milharal | São Paulo | 2018 | fotografia

Bernardo Ajzenberg, escritor, tradutor e jornalista, é autor de Carreiras cortadas (Francisco Alves, 1989), Efeito suspensório (Imago, 1993), Goldstein & Camargo (Imago, 1994), Variações Goldman (Rocco, 1998), A gaiola de Faraday (Rocco, 2002, prêmio de Ficção do Ano da Academia Brasileira de Letras), Homens com mulheres (Rocco, 2005, finalista do prêmio Jabuti), Olhos secos (Rocco, 2009, finalista do prêmio Portugal Telecom), Duas novelas (Rocco, 2011), Minha Vida sem Banho (Rocco, 2014, Prêmio Casa de las Américas 2015) e Gostar de ostras (Rocco, 2017).