30 de julho de 2018 Cultura no Divã

 
Duas teses se afirmaram na arte entre os séculos XX e XXI. A primeira foi proposta por Ernst Hans Josef Gombrich[1] (1909-2001), que nos mostrou que não há arte, mas artistas que pensam. A segunda, na passagem da arte moderna para a contemporânea, é de que, sob os restos recalcados de seu passado, o homem projeta o seu futuro. Ao retornar continuadamente a falar sobre si mesma, seus procedimentos, processos e técnicas, a arte inventa a si mesma sob seus restos eternos e constrói a aventura da subjetividade do homem.[2]

Trata-se da participação ativa em um jogo do possível inesperado que se dá a ver na presentificação das entrelinhas da obscuridade que a arte contemporânea possibilita – em seu contínuo estranhamento do sujeito em face de si mesmo. A obra de arte interroga o homem com seu ser e exige hic et nunc a participação deste. E, como a arte, o humano se olha no espelho e vê para além de si mesmo a fragmentação que o constitui na topologia de seu corpo.

Se a arte apresentou o fragmento, a parte, o resto como instante de ver que interroga o sujeito em diálogo com ela, é possível que o lado escuro dessa perspectiva por vezes se encontre na reificação da desrazão que as guerras nos colocam, sempre longe dos olhos, mas perto, muito perto de seus artífices. A vivência da guerra e seus horrores não pode, contudo, consistir em um resto que guardamos em segredo, pois ela sacode a superfície do corpo nos destituindo de toda possibilidade metafórica.

De fato, no coração do horror da guerra e de seus fazimentos, a poesia é banida e em seu lugar a poiésis produz a dor e o horror para os quais não se é capaz de tecer nenhuma fronteira. Por outro lado, em meio à cotidianidade normativa das mesmas coisas, de todos os modos, em todos os dias, surge em sua timidez resoluta a poesia como advento do poeta na devoção das palavras, uma a uma, remontando a imagem que cintila em seu espírito e, como as estações, tem o seu próprio tempo e movimento. Pode-se fazer poesia com a guerra, como se faz poesia em meio ao percurso de caminhar pela cidade? Quantos poetas estarão por aí, lançados às sombras de seu esquecimento, esperando uma palavra, um gesto, um sinal qualquer, que os faça romper um brilho no olhar? Nesse caso, vale lembrar, como cantam os poetas Gilberto Gil[3] (1942- ) e Chico Buarque de Hollanda (1944- ), que um copo vazio está cheio de ar.

 
Notas:

[1] Cf. Gombrich, Ernst Hans Josef. (1950) A história da arte. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2012.
[2] Cf. O RESTO, o rastro e a arte na contemporaneidade. Vídeo produzido pela revista Cultura no Divã – Relações contemporâneas entre psicanálise e cultura, São Paulo, v. 1, n. 5, 4 jun. 2018. Disponível em: <https://www.culturanodiva.com/o-resto-o-rastro-e-arte-na-contemporaneidade/>.
[3] Cf. Gil, Gilberto. (1974) Copo vazio. Disponível em: <https://youtu.be/Em9t116mOpA>.

 
Imagem: Cultura no Divã | Editorial # 6 | São Paulo | 2018 | fotomontagem

 
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