22 de março de 2018 Alcino Leite Neto

Um dos diretores contemporâneos ao qual vale a pena dedicar atenção (essa faculdade que utilizamos de maneira cada vez mais rudimentar) é o finlandês Aki Kaurismäki, nascido em 1957 e que desde 1983 realizou quase duas dezenas de longas-metragens, infelizmente pouco vistos e discutidos – como O outro lado da esperança (FI|GER, 2017, 100′, color.), exibido no Brasil.

Apesar de fazer um cinema acessível a plateias variadas, com narrativas facilmente assimiláveis, Kaurismäki não deixa de causar certa estranheza no público, em razão do modo de expressão muito singular. Também costuma incomodar a crítica bem-pensante, para a qual seus filmes são pequenas excentricidades, toleradas graças à dimensão “humanista”, como se diz, dos temas.

Certamente, há uma forte adesão de Kaurismäki ao drama de seus protagonistas, mas concluir daí que seu cinema seja marcado pelo humanismo constitui um gigantesco equívoco: é o mesmo que retirar dele toda a base conflitual e toda a dimensão crítica. Pode-se mesmo dizer que a obra de Kaurismäki não visa a ressaltar como é possível preservar o sentimento de humanidade, mesmo em face de dramas terríveis, mas o contrário: como é árduo manter a solidariedade para com o “humano” em um mundo tão adverso, propriamente des-humano.

A ideia de que este mundo é regido pelas forças impessoais do capital, indiferentes às tragédias dos indivíduos, domina o cinema de Kaurismäki. Ele vai mais longe, percebendo como tais forças dimensionam a burocracia de Estado, a esfera do trabalho, a vida social e até mesmo a maneira como as pessoas lidam com suas próprias questões.

A impessoalidade gera um modo de ser que se manifesta num misto de apatia, indiferença e automatismo, expressos nos filmes por uma mise-en-scène que valoriza a teatralização da vida cotidiana e a reação muito convencional ou neutra dos personagens, bruscamente afetada por atitudes imprevisíveis, que criam rupturas na dramaturgia.

Essa imprevisibilidade é o que, às vezes, confere o lado cômico, ou melhor, burlesco, a determinadas sequências. Outras vezes, é apenas algo que de súbito irrompe na cena naturalizada para ressaltar a dimensão trágica da narrativa – aqui entendida como a luta de indivíduos para sobreviverem em uma sociedade que lhes reserva, como destino, a marginalidade e o abandono. Com o burlesco, o diretor desmonta a pretensa gravidade e legitimidade das relações sociais contemporâneas. Com a irrupção do trágico, dá a ver como indivíduos sem eira nem beira acabam sendo expelidos para fora da própria “humanidade”.

Nota-se, assim, que o cinema de Kaurismäki é propriamente político, ou social, se preferirmos. Tudo isso está evidente em O outro lado da esperança. O título lírico, meio kitsch, não deve, porém, enganar. Não há o “outro lado da esperança” na história de Khaled, imigrante clandestino sírio que, fugindo da guerra em seu país, busca refúgio na Finlândia.

Ironicamente, Kaurismäki faz da capital Helsinki uma província retrô, um espaço subalterno do capitalismo globalizado, onde o outro protagonista, o ex-caixeiro-viajante Waldemar, pena para impulsionar seu novo negócio, um restaurante de segunda categoria. O restaurante acaba por se tornar o abrigo de Khaled, que é ali empregado ilegalmente. Entre o sírio, Waldemar e os demais funcionários cria-se então uma cumplicidade, talvez porque o microempresário desastrado e os demais subempregados também pressintam estarem eles próprios à beira do abismo. Ao buscar soluções para o restaurante, não é propriamente um negócio que todos almejam salvar, mas a própria vida.

Em tom de parábola, o mesmo que perpassa os recentes filmes do diretor, personagens colocados à margem da sociedade, ou próximos disso, acabam se comprometendo uns com os outros e tentando ajudar-se mutuamente. É essa visada de Kaurismäki que levou alguns a apontarem seu cinema como “populista”. Talvez seja. Seu “povo”, porém, não é aquele que reage às desterritorializações atuais recorrendo às ideologias da identidade, ao racismo e à brutalidade. É outro: é o povo que, como diz Bruno Latour (1947- ) em Onde aterrissar?,[1] foi “friamente traído” pela modernização e tenta reencontrar seu lugar no mundo e descobrir um modo de coabitar e compartilhar este mesmo mundo com o outro, o diferente.

Nota:

[1] Cf. Latour, Bruno. Où Atterir?: comment s’Orienter on Politique. Paris: La Découverte, 2017.

Imagem: Aki Kaurismäki | O outro lado da esperança | FI|GER | 2017 | divulgação

Alcino Leite Neto é jornalista, crítico de cinema e editor da Três Estrelas, editora do Grupo Folha. Na Folha de S.Paulo, foi editor dos cadernos Ilustrada e Mais!, repórter especial e correspondente em Paris. É formado em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com tese sobre o diretor italiano Roberto Rossellini.