1 de julho de 2015 Giovanna Bartucci

 
Com efeito, na atualidade há, presente na cultura, uma demanda por “orientação”, “compartilhamento”, em última instância, por um “olhar” (onisciente) do outro que aponta para uma experiência de insuficiência do sujeito em relação a si mesmo. Evidente também em nossa clínica cotidiana, ainda que de maneira distinta que em tempos anteriores, essa experiência pode ser abordada de diferentes perspectivas.

É claro que aponta para um narcisismo ferido, mas também para vivências de profundo desamparo nas quais o que se destaca é a impossibilidade do sujeito em encontrar uma saída possível. De modo que um ciclo vicioso se instala, vindo a reiterar sentimentos de insuficiência, inaptitude, profundo desânimo e, acima de tudo, a promoção da renúncia a um projeto de futuro. Jean Baudrillard (1929-2007), filósofo francês que pensou a contemporaneidade à exaustão, sugere que, se a coesão de nossa sociedade era mantida outrora pelo imaginário do progresso, ela o é hoje pelo imaginário da catástrofe. Mas, então, o que há em comum entre “outrora” e “hoje” é a ideia de coesão (de uma sociedade) – o que pressupõe, inicialmente, a existência de forças em conflito, por um lado, e da condição de resistência, por outro.

A “coesão”, hoje

Se, nas primeiras décadas do século XX, a relação de domínio e submissão que se estabeleceu entre o eu e o outro, então representado por figuras de autoridade, se acentuava – deslocando a função de proteção dos processos da cultura em direção a uma função destrutiva, a das organizações totalitárias do século –, também hoje é possível identificar um código de comportamento “politicamente correto” e, nessa medida, constritivo dos sujeitos imposto aos cidadãos.

De modo que a sociedade democrática contemporânea é marcada por um profundo desejo de “normalização”, mergulhada que está na “era da evitação”, esforçando-se para banir a realidade do infortúnio e da violência, ao mesmo tempo que busca integrar num sistema único as diferenças e as resistências, como sugere Elisabeth Roudinesco (1944-). Em outras palavras, pretende-se, fundamentalmente, a “regulação” ou “normalização” do mal-estar contemporâneo.

E, com efeito, se o traço essencial da autoridade moderna pode ser figurado pela imagem composta do pai sobreposta à do patrão (o paternalismo) – resultando, ao fundir “cuidado e poder”, em sentimentos de dependência, medo e reverência –, hoje não há endereçamento possível. Por que haveria? É necessário que os sujeitos sejam ágeis, disponíveis para mudanças a curto prazo, independentes. Não à toa, homens e mulheres contemporâneos vivem a fetichização do “ser autônomo”.

Mas, se em seus escritos iniciais Freud entende que o principal fator na formação das neuroses seria o conflito entre a sexualidade e a cultura – designando uma função de proteção aos propósitos da cultura –, em O mal-estar na cultura, ensaio de 1930, já não há reconciliação possível. O conflito é agora constitutivo do sujeito e jamais será ultrapassado. Então, devemos talvez nos perguntar: a função de proteção dos processos da cultura é ainda atuante? Onde podemos identificá-la? Continuemos.

 
Imagem: René Magritte | Golconde | [s. l.] | 1953 | óleo sobre tela

Giovanna Bartucci é psicanalista. Ph. D., é membro efetivo paulista da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). Professora doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduz as seguintes linhas de investigação: Novos Paradigmas e Método – Acerca da Psicanálise no Contemporâneo, e Psicanálise e Estéticas de Subjetivação – Cultura e Constituição de Subjetividade. Autora de Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), Prêmio Jabuti 2014 (categoria Psicologia e Psicanálise, 3º lugar); Fragilidade absoluta – ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta), entre outros. Com traduções de ensaios seus publicadas na França, na Bélgica, no Canadá e na Argentina, atua como assessora e consultora ad hoc para editoras e revistas especializadas.