24 de junho de 2015 Giovanna Bartucci

 
A cultura no divã – ou o divã na cultura? Em outras palavras, o que pode a psicanálise aportar à cultura nos tempos que correm? E, por outro lado, o que pode a leitura de fenômenos e manifestações socioculturais nos trazer, no sentido de fazer a psicanálise trabalhar? Que relações há, se é que existem, entre essas perspectivas?

É verdade que podemos apreender diferentes representações da psicanálise presentes na cultura por meio do cinema, da literatura ou da televisão. Desde Segredos de uma alma (GER, 1926, 97’, p&b) – considerado o primeiro “filme psicanalítico oficial” –, com direção do austríaco G. W. Pabst (1885-1967), passando por Freud além da alma (EUA, 1962, 140′, p&b), de John Huston (1906-1987), Anticristo (GER|FR|IT, 2009, 112’, color.), do dinamarquês Lars Von Trier (1956-), ou Um método perigoso (GER|EUA|GB, 2011, 99’, color.), do cineasta canadense David Cronenberg (1943-), a “ciência dos sonhos” tem sido retratada como uma “disciplina ameaçadora” mas, de todo modo, promotora de transformações no que se refere à experiência dos sujeitos consigo mesmos.

No que diz respeito à experiência psicanalítica, no entanto, somos confrontados com queixas que se relacionam à inoperância da psicanálise na atualidade, inapta que seria na capacitação de homens e mulheres para a vida que lhes toca viver. Ainda assim, romances como Palavras para dizer (1970), de Marie Cardinal (1929-2001), ou o mais recente O psicanalista (2001), de Leslie Kaplan (1943-) – que ficcionalizam processos psicanalíticos –, confrontam a visão depreciativa da área, recorrente nos últimos anos, ao reafirmar a função transformadora que a psicanálise pode exercer na vida dos sujeitos.

Mas, na verdade, são séries de TV como Sessão de Terapia (BR, 2012) – direção de Selton Mello (1972-) e roteiro de Jaqueline Vargas – que acompanha o tratamento de pacientes com o terapeuta Theo e o trabalho do terapeuta com sua supervisora – e Psi (BR, 2014) – direção de Marcus Baldini, roteirizada por Contardo Calligaris (1948-) e Thiago Dottori – em que o telespectador acompanha a rotina do psicanalista Carlo, a sua relação com a família, os amigos e os pacientes, bem como com as pessoas que encontra pelo caminho – que talvez possam fazer a psicanálise trabalhar.

Isto porque estão associadas a programas representantes de uma “estética” que pretende substituir ficção por realidade no melhor estilo reality show. Uma estética que  aspira por desvelar, expor e exibir experiências íntimas dos sujeitos para serem “compartilhadas” por todos. Até mesmo diferentes telejornais vêm se aproximando do estilo “faz de conta” – em que apresentadores e telespectadores são bons e íntimos amigos. De modo que uma constatação e uma pergunta se impõem. A constatação, um tanto evidente: na atualidade há, presente na cultura, uma demanda, lançada ao léu, por “orientação”, “compartilhamento” – em última instância, por um “olhar” (onisciente) do outro – que aponta para uma experiência de insuficiência do sujeito em relação a si mesmo. A pergunta: quais são e o que está em jogo nessas dinâmicas que expõem a céu aberto a intimidade dos sujeitos por meio de um endereçamento a um outro, a princípio indeterminado?

Mas para que essa pergunta possa ser respondida, devemos dar um passo atrás e explorar um pouco, em nossos próximos desenvolvimentos, a relação entre psicanálise e cultura – considerando os elos evidenciados por Sigmund Freud (1856-1939), pai da psicanálise, ao longo de sua obra. Sigamos, então.

 
Imagem: Fernando Lemos | Alexandre O’Neill – Lavagem Cerebral | Portugal | 1949-52 | fotografia

Giovanna Bartucci é psicanalista. Ph. D., é membro efetivo paulista da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). Professora doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduz as seguintes linhas de investigação: Novos Paradigmas e Método – Acerca da Psicanálise no Contemporâneo, e Psicanálise e Estéticas de Subjetivação – Cultura e Constituição de Subjetividade. Autora de Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), Prêmio Jabuti 2014 (categoria Psicologia e Psicanálise, 3º lugar); Fragilidade absoluta – ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta), entre outros. Com traduções de ensaios seus publicadas na França, na Bélgica, no Canadá e na Argentina, atua como assessora e consultora ad hoc para editoras e revistas especializadas.