8 de julho de 2015 Silviano Santiago

O filósofo italiano Giorgio Agamben (1942-) nos legou incisiva e bela reflexão sobre a noção de contemporaneidade. Ele parte de um paradoxo, herdado das Considerações intempestivas (1873-1876), de Nietzsche (1844-1900): o contemporâneo é o inatual, ou seja, é aquilo que, ao se situar fora do espaço e do tempo, é entregue ao ser humano pelas circunstâncias.

O ser humano não se torna contemporâneo por coincidir com seu tempo, ou por reproduzir a si como imitação ou cópia da situação que vive. É contemporâneo ao operar um deslocamento espacial entre ele e a atualidade. O contemporâneo insere-se no espaço deslocado e no tempo anacrônico a fim de ganhar competência para melhor apreender – paradoxalmente, repita-se – sua época.

Alerta Agamben: não se instaura a não coincidência entre atualidade e situação para que o homem viva – nostálgico – em outra cidade e outro século. O ser humano inteligente sabe que não pode fugir ao seu tempo.

O raciocínio de Agamben prossegue sob a forma de alusões inesperadas. Elas reforçam e levam adiante a premissa exposta de modo paradoxal na abertura.

Uma delas é a moda. De caráter profano, a referência a ela esclarece a pertinência da fissura operada no tempo histórico pela intervenção da inatualidade. A roupa da moda oscila entre o momento que ainda não chegou e aquele que já não é mais. É reconhecida por todos como algo que ainda não é, que será talvez, ou que já foi. O tempo próprio à moda – e o próprio à contemporaneidade − se bifurca em um “ainda não” (futuro) e um “não mais” (passado). Ancora-se no espaço entre os dois.

A fissura é, pois, o “entrelugar” no contemporâneo onde se relacionam as frações do tempo expostas por ela de modo inexorável. Oferecido pela lógica da moda, o intervalo cria a heterogeneidade na dimensão temporal e serve para que o atual mantenha com o passado e com o futuro uma relação particular. Ali, no entrelugar, o contemporâneo pode reevocar e revitalizar, pode reeditorar tudo aquilo que tinha sido descartado por ter sido declarado morto.

O poeta russo Osip Mandel’stam (1891-1938) fornece a Agamben o andaime para um segundo paradoxo, para uma segunda definição de contemporaneidade. Em poema, Osip propõe a correlação entre o tempo da vida de um indivíduo, o de suas vértebras quebradas pelo presente, e o tempo histórico coletivo, o de uma fera cujo dorso está fraturado pela época. O poema diz que, ao soldar com o próprio sangue o dorso fraturado do século/fera, o homem paga a sua contemporaneidade com a vida. Ao manter o olhar fixo no rosto atormentado pela dor do século/fera, o contemporâneo não busca as luzes, mas o escuro, paradoxalmente. Copio: “Todos os tempos são obscuros para quem deles experimenta a contemporaneidade. Contemporâneo é, precisamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”.[1]

Perceber o escuro do presente − alerta Agamben com o auxílio dos neurofisiologistas − não é manifestação de inércia ou de passividade por parte do sujeito. Implica a atividade de neutralizar as luzes que provêm da época para enxergar suas trevas, de que são inseparáveis. Contemporâneo é quem recebe no rosto o facho de trevas que provém do seu tempo.

O filósofo comprova sua reflexão com as obras de Michel Foucault (1926-1984) e de Walter Benjamin (1892-1940). Aquele afirma que suas perquirições históricas sobre o passado, suas arqueologias, são apenas a sombra trazida pela sua interrogação teórica sobre o presente. Este, que o indicador histórico contido nas imagens do passado só alcançará sua plena legibilidade em determinado momento da sua história.

Nota:

[1] Agamben, Giorgio. (2006) O que é ser contemporâneo? – e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 63.

Imagem: Wesley Duke Lee | O nome do cadeado é: As circunstâncias e seus guardiões | [s. l.] | 1966 | óleo sobre tela

Silviano Santiago é escritor e crítico literário. Doutor em Letras pela Sorbonne, lecionou em universidades norte-americanas, transferindo-se posteriormente para a PUC-Rio. Atualmente é professor emérito da UFF. Autor de Mil rosas roubadas (Companhia das Letras, 2014), vencedor do Prêmio Oceanos em 2015, recebeu o Prêmio Jabuti de literatura por três vezes: em 1982, pelo romance Em liberdade (Rocco, 1981); em 1993, Uma história de família (Rocco, 1992), e em 2017, Machado (Companhia das Letras, 2016). Pelo conjunto de sua obra, que inclui romances, contos, ensaios de crítica literária e cultural, recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, e o Prêmio José Donoso, no Chile.