Temos afirmado que encontrar caminhos para se pensar a subjetividade neste início de século requer o enfrentamento de múltiplos desafios. De que sujeitos falamos? De que identidades partimos? Os processos sociais têm suportado inúmeros abalos que expressam as mudanças, em diferentes níveis, dos campos geopolítico e sócio-histórico, o que, por sua vez, tem determinado metamorfoses subjetivas. As diferenças entre as cidades do início do século XX e as metrópoles do século XXI exibem com grandeza essas transformações, e mostram o trânsito aflito da pós-modernidade em direção à hipermodernidade.
Uma das características da hipermodernidade é a grande inquietude que se apodera das pessoas diante da vastidão e rapidez das mudanças ocorridas no curso das últimas décadas em que um conjunto de fatores concorrem na construção desse desassossego. Conjugam-se “as biociências e as tecnociências, a mundialização, as grandes migrações, as revoluções da informática, as transformações do ambiente nas dimensões atmosféricas, agrícolas, geográficas e biológicas. Ao ponto de se falar de uma nova era geológica”.[1]
No início dos anos 2000, alguns pensadores propunham nomear essa nova conjuntura que atualmente se maximiza como expressão de um cenário diaspórico, de múltiplos fluxos, numa hibridez de culturas, consumos, tecnologias e comunicação. Nessa conjunção discute-se a emergência de novas subjetividades. Estas não mais se ligam a qualquer matriz; ao contrário, são subjetividades desconexas que “optam por atravessar os fluxos metropolitanos e comunicacionais, pondo em discussão toda e qualquer sólida configuração daquilo que foi racializado, etnicizado, sexualizado por parte da lógica classificatória do Ocidente”.[2]
Numa clara discussão sobre os macroprocessos migratórios próprios do mundo contemporâneo, tal questionamento coloca em discussão a relação entre o nomadismo, característico de alguns povos, e a diáspora, geralmente identificada a um processo migratório forçado e violento. As diásporas, historicamente compreendidas como dimensão coletiva do desarraigamento, remetem ao exílio e, neste, as incidências subjetivas ressaltam o desterro, isto é, a perda do território de origem e os sentimentos de não pertencimento na nova morada. Não se trata disso, nessas novas subjetividades aqui examinadas: o sujeito diaspórico exporia as novas identidades em curso que exprimiriam “os desafios e irregularidades perante a ordem administrativa estatal hospedeira, ou perante o controle das culturas de origem transplantadas para o mesmo território”.[3]
Enfrentar o dilema da compreensão dessas novas manifestações que emergem como verdadeiras mutações sociais e subjetivas, e nos mais diversos lugares, traz à tona o entendimento do individualismo exacerbado e, com ele, uma nova percepção dos valores da intimidade, do privado e da afirmação das singularidades. Diante do avanço da economia hiperliberal, da progressão de uma sociedade de indivíduos e das transformações da política, seria o sujeito diaspórico uma alternativa para se liberar o sentido de diferenciação e multiplicidade e para a experimentação das pluralidades? Como cultura e como episteme, a psicanálise tem à sua frente a indagação sobre essas novas subjetividades sincréticas.
Notas:
[1] Kaës, René. Le Malêtre. Paris: Dunod, 2012, p. 83.
[2] Canevacci, Massimo. Gemação diaspórica e subjetividade sincrética. In: Milan, Denise; Matos, Olgária (Org.). Gemas da terra: imaginação estética e hospitalidade. São Paulo: Edições Sesc, 2010, p. 179.
[3] Idem, ibidem, p. 182.
Imagem: M.C. Escher | Metamorphose | [s.l.] | 1937 | impressão