12 de agosto de 2015 Giovanna Bartucci

 
A representação de uma sociedade alienante na era da linha de montagem, onde não há mais lugar para o acaso – a “era de nosso Ford”, presente em tantas distopias –, também explicita as consequências emocionais e psíquicas associadas a tais experiências, sobretudo no que se refere à constituição de narrativas de vida futura. Vale a pena, então, clarificarmos o que se configurou, no século XX, como “fordismo” – o fenômeno da divisão do trabalho na sociedade agregado ao tempo de rotina, ou seja, sem o controle do trabalho pelo trabalhador.

Ao industrializar o processo de produção na fábrica The Ford Motor Company (Michigan, EUA), nos anos 1910-1914 – à época, exemplo da divisão do trabalho em bases tecnológicas –, Henry Ford (1863-1947) favoreceu o emprego de especialistas, trabalhadores que exerciam operações pequenas que exigiam pouco pensamento ou julgamento, em oposição aos artesãos.

Até então trabalhadores altamente qualificados, que executavam serviços complexos em motor ou carroceria de automóvel no curso de um dia de trabalho, os artesãos gozavam de ampla autonomia, uma vez que a indústria automobilística configurava-se como um conjunto de lojas descentralizadas. Mas como em uma colmeia, à medida que uma fábrica cresce, cada uma de suas células passa a exigir um determinado tipo de trabalho. Assim, a complexidade de tal organização – que culminou, à década de 1950, na “engenharia racional” – só poderia funcionar com regras precisas.

Tal engrenagem apoiava-se, então, nos princípios da “lógica da dimensão” – quanto maior, mais eficiente –, da “lógica do tempo métrico” – o tempo minuciosamente calculado para que administradores soubessem com precisão o que todos faziam num dado momento – e da “lógica da hierarquia”, cujo objetivo era afastar técnicos e administradores dos trabalhadores de base.

Nos anos 1950, porém, no que se referia às promoções e benefícios, o planejamento minucioso do tempo de trabalho passaria a ligar-se a medidas de tempo bastante longas nas próprias empresas, guiando administradores, técnicos e trabalhadores braçais na linha de montagem. O pagamento por antiguidade corresponderia ao número total de horas que um funcionário trabalhara para a empresa, tendo ele, assim, condições para calcular os benefícios do tempo de férias e ausência por doença.

Se hoje dificilmente consideraríamos o tempo rotinizado uma conquista pessoal, o sociólogo Richard Sennett (1943-) sugere que, em face das tensões, prosperidades e depressões do capitalismo industrial, o tempo de rotina tornara-se algo que não um ato de repressão e dominação, praticado pela administração em nome do crescimento da organização industrial. Transformou-se em uma arena onde os trabalhadores podiam afirmar as próprias exigências e criar uma narrativa positiva para a própria vida.

Contudo, ainda que a rotina tenha vindo proteger, ela também veio degradar. Como também sinaliza Sennett, se o presente imediato torna-se claro à medida que um trabalhador maneja a mesma alavanca horas a fio, o que se tornava ausente da vida de rotina era a perspectiva de um futuro diferente – ou pior, o conhecimento de como realizar a mudança.

O fato é que a atividade mecânica não gera um senso de narrativa histórica maior, projetando os sujeitos em direção à experiência de desamparo. Entretanto, o que faz com que, em face da demanda contemporânea permanente por “autonomia e autossuficiência”, a constituição de uma narrativa de vida que incorpore um projeto de futuro se torne hoje quase impossível? Resposta inicial: as subjetividades contemporâneas vivem nas bordas-abismos da e na atualidade, tema que retomaremos adiante. Mas também há bordas que constituem laços, criam conexões…

 
Imagem: Dreamstime | Maquinaria del reloj | [s.l.] | 2013 | fotografia

Giovanna Bartucci é psicanalista. Ph. D., é membro efetivo paulista da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). Professora doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduz as seguintes linhas de investigação: Novos Paradigmas e Método – Acerca da Psicanálise no Contemporâneo, e Psicanálise e Estéticas de Subjetivação – Cultura e Constituição de Subjetividade. Autora de Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), Prêmio Jabuti 2014 (categoria Psicologia e Psicanálise, 3º lugar); Fragilidade absoluta – ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta), entre outros. Com traduções de ensaios seus publicadas na França, na Bélgica, no Canadá e na Argentina, atua como assessora e consultora ad hoc para editoras e revistas especializadas.