5 de agosto de 2015 Giovanna Bartucci

 
Também Admirável mundo novo (1932), obra de Aldous Huxley (1894-1963) publicada quase uma década após o lançamento em língua inglesa do romance Nós (1921) de Yevgeny Zamyatin (1884-1937), descreve uma sociedade totalitária fascinada pelo progresso da ciência e certa de poder manter-se estável por meio da oferta de felicidade aos seus cidadãos.

Ainda que sua perspectiva irônica e desencantada do mundo já tivesse se manifestado em seus romances publicados após a Primeira Grande Guerra (1918-1924), é difícil acreditar que o autor não tenha bebido da obra do escritor russo. Mustapha Mond, o Dirigente Regional da Europa Ocidental, um dos dez Dirigentes do Mundo, que tem o bordão “Comunidade, Identidade, Estabilidade” como lema, e o Ditador Benevolente, de Nós, certamente compartilham a mesma visão de mundo expressa na observação de Mond: “o nosso Ford esforçou-se, ele próprio, para deslocar a ênfase dada a verdade e a beleza para o conforto e a felicidade. A produção em massa demandava este deslocamento. A felicidade universal mantém as rodas girando de forma inabalável; a verdade e a beleza não o fazem”.

Escrito em 1931 e publicado em 1932, Admirável mundo novo – cujo tema “não é o progresso da ciência como tal, mas o progresso da ciência na medida em que atinge os indivíduos” – narra uma história que se passa num futuro distante, no ano 632 da era de “nosso Ford”, onde tanto a produção de seres humanos por meio de manipulações genético-químicas, quanto a sua identidade, produzida por meio da hipnopedia – hipnose auditiva administrada durante o sono –, são geridas pelo Estado de Utopia. Produzidos nos centros de incubação e condicionamento segundo as diferentes castas às quais pertencerão – Alfa, Beta, Delta, Gama, Épsilon, em ordem decrescente –, as características desses seres humanos correspondem ao grau de complexidade da atividade profissional que irão desempenhar.

De modo que o que caracteriza esse “admirável mundo novo” é, fundamentalmente, o fato de que qualquer desejo, na medida em que possa ser manifesto, será satisfeito – as pessoas têm o que desejam e não desejam o que não podem ter. E caso essa feliz homeostase venha a ser levemente alterada, poderá ser recuperada pelo uso da droga “soma”, tanto tranquilizante quanto intoxicante, promotor de felicidade. Não é à toa, então, que “todo condicionamento tem este objetivo: fazer as pessoas gostarem de seu destino social inescapável”. Ou seja, aquilo que os habitantes de Utopia vivenciam retrata a dinâmica da sociedade em curso: ausência de obstáculos, realização imediata de desejos e ausência de emoções, sejam elas agradáveis ou desagradáveis.

Com efeito, a representação de uma sociedade alienante, desumana, na era da linha de montagem, da cultura de massa e da organização eficiente remete o leitor tanto à experiência da Europa Moderna com suas grandes cidades e produções racionalizadas, quanto aos pesadelos da Primeira Guerra Mundial. A referência ao fordismo – “a era de nosso Ford” – explicita bem a dinâmica de submissão em curso. A sátira à sociedade automatizada que se instalava na América do Norte, onde não havia mais lugar para o acaso, condensa, aqui, as características da sociedade moderna. Sigamos.

 
Imagem: William Kentridge | Sleeper – Red | Londres | 1997 | gravura

Giovanna Bartucci é psicanalista. Ph. D., é membro efetivo paulista da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). Professora doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduz as seguintes linhas de investigação: Novos Paradigmas e Método – Acerca da Psicanálise no Contemporâneo, e Psicanálise e Estéticas de Subjetivação – Cultura e Constituição de Subjetividade. Autora de Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), Prêmio Jabuti 2014 (categoria Psicologia e Psicanálise, 3º lugar); Fragilidade absoluta – ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta), entre outros. Com traduções de ensaios seus publicadas na França, na Bélgica, no Canadá e na Argentina, atua como assessora e consultora ad hoc para editoras e revistas especializadas.