19 de agosto de 2015 Paula Francisquetti

 
A teoria matrixial de Bracha Ettinger (1948-), psicanalista e pintora israelense, e sua ideia de conexão-de-borda é uma resposta ética importante ao que acontece no mundo hoje: fronteiras vigiadas e fechadas diante de inúmeros imigrantes deixados a morrer no mar em embarcações precaríssimas; milhares de refugiados de guerra estacionados na beira de fronteiras à mercê de violências diversas; cidades entrincheiradas para separar ricos de pobres. Ela contrapõe à fronteira e seu traçado fixo,  ao muro intransponível, à blindagem, a ideia de borda, de conexão-de-borda, de hospitalidade, que podemos considerar como uma tática de guerrilha pacífica diante da violência e da indiferença que nos atinge em escala mundial.

A ideia de conexão-de-borda que faz laço surge no contexto da teoria matrixial que tem como um de seus pontos fundamentais a transubjetividade, que se passa num entre e implica um campo compartilhável, um campo de afetação mútua. Impulsionada pelo tropismo – concepção de Nathalie Serraute (1900-1999), escritora franco-russa, que diz respeito às intensidades presentes sob as palavras que estabelecem conexões, esse território em que movimentos secretos nos associam uns aos outros –, aqui a subjetividade surge do encontro, do contato por meio das bordas, das ressonâncias e das afetações implicadas no campo partilhado.

Vale marcar que transubjetividade é diferente de intersubjetividade; e quando está em jogo a intersubjetividade, a transubjetividade não deixa de a atravessar. Ettinger aponta que “durante a vida, a esfera matrixial pulsa no subsolo de ambas subjetividade e intersubjetividade”. Na transubjetividade matrixial encontramos sujeitos parciais em conexão de espaço-borda, transgressão de fronteiras, ressonância psíquica e imersão transmissível.

No espaço do entre, onde as conexões acontecem, pode-se encontrar a pluralidade, vários sujeitos parciais em ressonância psíquica. Caberia ao sujeito parcial abraçar matricialmente uma nova intensidade e plantá-la na rede de conexões de espaço-borda, no espaço comum. A possibilidade de cocriação, de copoieses entre esses sujeitos parciais se faz no cotestemunho, na compaixão hospitaleira e na fragilização. Aliás, é a fragilização que possibilita coevanescência, ou seja, porosidade e entrega, assim como a coemergência do fruto desse encontro num determinado tempo. O processamento matrixial não tem a palavra como único destino possível, pois nele navegam intensidades, ressonâncias não discursivas e percursos emocionais ligados a elas.

Bracha Ettinger, entre outras atividades, trabalha num grupo que promove ações conjuntas entre israelenses e palestinos. Eles fazem jardinagem numa praça pública juntos, levam alguém do grupo ao médico juntos, enfim, na convivência estabelecem laços, conexões-de-borda, criam um espaço de transformação mútua que vai além dos discursos. No um a um, no menos um (sem a figura vertical de um líder), no um com outros, lutam pela paz, criam outros mundos, um escape por pequenas frestas impulsionado por essa solidariedade que se estabelece no miolo da vida.

 
Imagem: Tuca Vieira | A foto da favela de Paraisópolis | São Paulo | c. 2002 | fotografia

Paula Francisquetti é psiquiatra e psicanalista, com mestrado pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades de Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (USP) sobre a arte de Ana Mendieta intitulado Ana Mendieta: Atravessamentos em um coração desprotegido. Autora de “Autorias dissonantes”. Percurso: Revista de Psicanálise, São Paulo, n. 43, p. 79-84, 2009, entre outros. Participa também da Cia. Teatral Ueinzz.