1 de março de 2018 Maria Inês Assumpção Fernandes

 
O sociólogo José de Souza Martins[1] (1938- ) dizia que nossa sociedade contempla duas humanidades: uma que envolve as pessoas integradas que, de algum modo, se inserem no circuito reprodutivo das atividades sociais e econômicas; são sujeitos sociais de direitos reconhecidos e lugar assegurado no sistema de relações políticas, sociais e econômicas. A outra humanidade envolve os inseridos pelas margens – inclusão marginal ─ através de trabalho sempre precário, nos pequenos negócios mal pagos e muitas vezes ilegais. Acrescentam-se, hoje em dia, nessa massa de incluídos, os apátridas, os imigrantes legais e ilegais, os exilados, os refugiados. Essa humanidade que não permite aos sujeitos o compartilhamento dos direitos fundamentais de liberdade e de justiça; é sub-humanidade.

Um dos grandes desafios contemporâneos abrange essa ilusão de inclusão que a globalização incentiva e amplia com estratégias de mascaramento e de legitimação. Interrogar-se sobre os efeitos decorrentes dessa situação de sub-humanidade implica colocar em foco a relação entre o psíquico e o político e indagar-se, nessa nova geografia social instalada na hipermodernidade, sobre as garantias necessárias à constituição e consolidação das subjetividades em jogo na complexa malha social.

Psicanalistas que operam no campo social registram a intensa perturbação de valores, a confusão de línguas, a desorganização dos vínculos que expressam uma crise dos metaquadros: um colapso das garantias metapsíquicas – dadas pela cultura e seus valores, pela língua, pelos costumes ─ e metassociais ─ com o abalo das construções sociais como as representações de Deus, Estado e progresso. O abalo dessas garantias compromete a integridade psíquica e a organização subjetiva: não há o apoio do psiquismo e do corporal sobre o vínculo social. Esse apoio que é ligado à capacidade de se fazer entender, de se fazer reconhecer e de se inserir nas leis da palavra e nas forças de enunciação. Entram em sofrimento as formações intermediárias, os processos de ligação intrapsíquica e as configurações de vínculos intersubjetivos.

Muitos dos perdidos no mundo, pessoas em situação de rua ou errantes de país em país, frequentando os centros e abrigos por poucos dias ou por muito tempo, expressam uma espécie de desrealização: desconectados de qualquer vínculo, isolados, às vezes esquecendo seu próprio nome, muitos esgotados pela barreira linguística. Fatigados de existir, num anonimato total, são a expressão de um lento processo de desfiliação, do desmoronamento psíquico e da desumanização. Aqui as alianças, os pactos e os contratos que ligam os grupos são desfeitos. Falham os processos que sustentam as exigências de trabalho psíquico impostas à psique pelo fato de sua relação com o corporal, com a intersubjetividade e com o sentido.

A crise atual, na medida em que procede de um abalo dos metaquadros, transforma o contrato social e dá livre curso a uma destrutividade assassina. A desqualificação, a arrogância, o desprezo, a crueldade participam desse movimento que recusa ao outro seu estatuto de semelhante, na diferença. São os homens matáveis – Homo sacer.[2] Desligado de seus vínculos de obrigação, pelo enfraquecimento das restrições de identificação e das atribuições a ele impostas, além da erosão das instâncias sociais que fundam os ideais, o sujeito é submetido à tentação de transformar o outro em objeto de exploração e consumo para nutrir seu insaciável narcisismo.[3]

Esse primado do desligamento é fonte de desintegração e, simultaneamente, de impossibilidade de diferenciação levando à errância social e à errância identitária. O abandono, o esquecimento e o desaparecimento são as figuras da precariedade do mundo atual. Caminhamos da sub-humanidade à desumanidade.

 
Notas:

[1] Cf. Martins, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.
[2] Cf. Agamben, Giorgio. (1995) Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
[3] Cf. Gaillard, Georges; Pinel, Jean-Pierre. Actif-Passif, Féminin-Phallique: Le Travail des Polarités au sein des Équipes. Nouvelle Revue de Psychosociologie, Toulouse: Érès, n. 14, p. 113-129, 2012.

 
Imagem: Samusocial | Plus on Vit dans la Rue, Moins on a de Chance de s’en Sortir | Paris | 2012 | fotografia

Maria Inês Assumpção Fernandes é professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), com tese de livre-docência sobre Mestiçagem e Ideologia (2004). Docente desde 1977 no IPUSP, atuando na graduação e na pós-graduação, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão nas áreas de saúde mental, processos coletivos, grupais e institucionais, nestes últimos considerando-se famílias e casais, também coordena o Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO).