15 de março de 2018 Giovanna Bartucci

 
“Que a psicanálise participa, em qualquer um que faça a experiência, do processo de civilização, significa claramente que ela atinge sua ‘meta’ se consegue – particularmente no tratamento – colocar em ação a atividade de linguagem abrindo para a fala os recursos de memória da língua”, afirma Pierre Fédida (1934-2002). Claro, não se trata aqui da linguagem comunicacional, privada esta que está de seu uso metafórico e ficcional, inibindo assim o pensamento associativo. Ao contrário, “colocar em ação a atividade de linguagem abrindo para a fala os recursos de memória da língua” implica ter na regressão em análise sua condição a priori. Esta, por sua vez, tem na “negatividade” – ou seja, na negatividade que fundamenta o silêncio necessário ao ato de escutar, por meio da recusa de ceder à resposta iminente a uma pressão da fala do analisante – a experiência da temporalidade sem fim, e que permite à experiência psicanalítica constituir-se como lugar da interpretação e da construção. “Se assim não ocorre”, diria o psicanalista francês, “e se (…) o analista ‘responde’, ele detém este infinito e isto ocorre pela intervenção de um fim, aqui precisamente representado por sua própria pessoa.”[1]

De fato, como poderia ter formulado Sigmund Freud (1856-1939), junto às suas primeiras pacientes, nos anos 1880 – experiência princeps na criação da psicanálise –, se o psíquico não é diretamente observável, como suporia o fenomenólogo que entende apreender as significações dos fenômenos, é necessário restituir o memorável (e não a memória) por meio da atividade de linguagem. Não à toa, o fenômeno do sonho adquiriu “valor de memória”: “o sonhar é em seu todo uma regressão às condições mais remotas do sonhador, uma revivificação de sua infância, das moções de impulso [Triebregungen] dominantes nela e dos modos de expressão nela disponíveis”,[2] afirma Freud em A interpretação de sonhos, pedra fundamental da psicanálise.

Com efeito, sabemos que o deslocamento do ser do campo a consciência para o registro do inconsciente, permitindo que pontuemos aquilo que não é enunciado pelo discurso da consciência e que se apresenta de maneira deslocada no registro da transferência, só foi possível por meio da constatação, por Freud realizada, de um topos – o inconsciente – cuja espacialidade e temporalidade são, a partir do lugar da linguagem, a morada de um si em permanente conhecimento e desconhecimento de si. Também é inegável que a fugacidade da fala no momento em que fala é resultante daquilo que ela se escuta dizer. Como sustenta Fédida, da “fala que fala sua experiência do possível na medida em que se torna, na sua própria escuta, receptividade aos tempos de seus acontecimentos”.[3]

Mas que tempo seria esse vivido por Pedro? Após, aproximadamente, dois ou três anos do início de sua análise, Pedro atravessava um período bastante difícil, deveria tomar algumas decisões importantes, concernentes ao seu futuro, profissão, família. Acompanhava-o a tiracolo um estado depressivo significativo. E foi então que, durante dois meses, Pedro vinha às suas três a quatro sessões semanais, deitava-se no divã e nada dizia. Silenciava. Não dormia em sessão, deixava-se deprimir. De minha parte, nada podia “fazer” a não ser permanecer, in praesentia – se verbalizasse algo, lá estava, se ficasse em silêncio, era ao silêncio que escutava… Terminada a sessão, levantava-se, apertava minha mão e voltava na próxima. Após dois meses, pouco a pouco, Pedro volta a falar.

Sim, mas que tempo teria sido esse vivido por Pedro se a experiência da escuta de sua própria fala lhe era insuportável? O fato é que, nessa clínica mesma em que a linguagem, instrumento por excelência do trabalho analítico, é passível de entrar em pane, a experiência psicanalítica termina por se constituir em um lugar (psíquico) que, claro, pressupõe um outro que escute; contudo, um outro que, para além de suposto-saber, seja ele mesmo esse lugar,[4] encarne esse lugar, para que no momento em que nele (lugar) adentrem Pedros, Joões e Marias, deixe ele mesmo (analista) de ser esse corpo, para estar essa espacialidade – cuja função é a de simultaneamente sustentar uma temporalidade sem fim.

 
Notas:

[1] Fédida, Pierre. Clínica psicanalítica: estudos. Tradução: Cláudia Berliner, Martha Prada e Silva e Regina Steffer. São Paulo: Escuta, 1988, p. 116, p. 118, p. 120.
[2] Freud, Sigmund. (1900) A interpretação dos sonhos. Tradução: Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 577, vol. 2.
[3] Fédida, Pierre. Op. cit., p. 121.
[4] Ideia proposta inicialmente em: Bartucci, Giovanna. A doença da morte: um direito de asilo. São Paulo: Annablume, 1998.

 
Imagem: Casado | Segredo do inconsciente 8 | Recife | [s. d.] | óleo sobre tela

Giovanna Bartucci é psicanalista. Ph. D., é membro efetivo paulista da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). Professora doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduz as seguintes linhas de investigação: Novos Paradigmas e Método – Acerca da Psicanálise no Contemporâneo, e Psicanálise e Estéticas de Subjetivação – Cultura e Constituição de Subjetividade. Autora de Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), Prêmio Jabuti 2014 (categoria Psicologia e Psicanálise, 3º lugar); Fragilidade absoluta – ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta), entre outros. Com traduções de ensaios seus publicadas na França, na Bélgica, no Canadá e na Argentina, atua como assessora e consultora ad hoc para editoras e revistas especializadas.