16 de setembro de 2015 Daniel Hamer Roizman

 
Sabe quando você quer muito uma coisa e acaba conseguindo outra? Tal como estar querendo comer uma bela massa e acabam te levando para comer uma bela carne? Sensação de desencaixe no ar, certo? Quero dizer, por mais que a carne seja boa, não é aquilo que você desejava de fato.

Acho que essa metáfora gastronômica se estende ao alcance simbólico da lei paterna que impede a consolidação de um laço simbiótico entre mãe e filho. Clinicamente observo que a função materna está muito atravessada pela fetichização do próprio filho e que muitas vezes a lei não possui alcance suficiente para recobrir toda essa realidade simbiótica. Ou seja, quero dizer que o desejo pelo terceiro elemento (geralmente o pai), que visa interceder na relação dual entre a mãe e seu filho/fetiche, é um desejo pela carne mas não pela massa…

Tenho observado que tanto em crianças como em adultos podem existir multiplicidades simbólicas coexistindo lado a lado, de forma que essa fetichização ocorra borrada com a neurose e em certas circunstâncias até mesmo borrada com manifestações psicóticas, a exemplo de alucinações, premonições, experiências místicas e/ou sobrenaturais. Nesse sentido, o modelo proposto corresponde ao do mosaico, ou seja, uma teia caracterizada por uma gama variável de incidências da lei simbólica.

Qual a razão dessa abertura conceitual? O fato de a clínica ser demasiadamente ampla para conseguirmos usar de maneira fixa a relação simbólica do desejo com seu objeto. Em especial os conflitos infantis: ora revelam mães excessivamente possessivas que utilizam seus filhos de forma a desautorizar constantemente seus maridos de um lugar de autoridade, ora os próprios maridos/pais não se fazem efetivos agentes desses interditos simbólicos, já que também gozam ao permitir que seus filhos tenham acesso a uma relação simbiotizada.

Nessa linha de raciocínio, entendo que existiria um buraco intransponível entre a fetichização do bebê/criança e o amor à lei que pode regular e barrar essa mesma relação. Isso se evidencia tanto a partir de uma aliança sórdida entre marido e mulher, como também em situações em que o pai está ausente.

A partir dessa noção de “lei incompleta/parcial” se faz necessária uma reflexão mais profunda, caso se queira pensar as consequências da proliferação dos divórcios litigiosos, a origem dos comportamentos antissociais das crianças na família e na escola, a epidemia de medicação como forma de obscurecer as relações fetichizadas do âmbito escolar, além de outras formas contemporâneas de sofrimento psíquico.

Aqui frisamos nossa inquietação: diante das variadas situações clínicas, será que ainda é preciso sustentar um modelo purista em que o desejo pela massa ou se mantém de forma absoluta ou é completamente substituído pelo desejo pela carne?

Resposta: achamos que o cardápio é mais amplo do que a existência excludente de ambos os pratos.

─ Garçon!?
─ Paillard com fetuccini, por favor!

 
Imagem: Cultura no Divã | Sem título | São Paulo | 2018 | fotoedição

Daniel Hamer Roizman é psicólogo, psicanalista e mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP). Autor de “A obesidade como prato cheio para o capitalismo”. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia, São Paulo: PUC, v. 3, n. 2, 2011, e “A psi biológica”. Psique, n. 42, 2009. O artigo aqui publicado é um recorte e adaptação do texto “A não coextensividade do nome-do-pai”, a ser publicado nos anais do V Encontro Nacional & V Colóquio Internacional do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise (Belém – PA), 2015.