23 de setembro de 2015 Matheus Cosmo

 

This is a time in which kinship has become fragile,
porous, and expansive.
Judith Butler

Foi Walter Benjamin (1892-1940) quem afirmou não ser possível uma melhora na escola ou na casa paterna enquanto não se destruir o Estado que necessita dessa má escola e dessa má casa. Uma reflexão semelhante pode ser executada no que diz respeito ao parentesco, reconhecendo-o como uma esfera de normas culturais profundamente subordinada ao Estado, que se revela extremamente dependente dessa esfera para sua emergência e manutenção. Em tempos de apagamento do debate sobre gênero nas escolas e da legitimação de algo como o Estatuto da Família, que, no limite, não busca uma definição do que seria uma família, mas uma restrição de seu conteúdo em termos legais, é necessário perguntar: afinal, que formas de parentesco são inteligíveis e aceitas pelo poder?

Com maestria, a filósofa Judith Butler[1] (1956) ressalta que o uso do complexo de Édipo, por parte de alguns psicanalistas, para justificar estruturas familiares necessariamente heterossexuais, traz consigo consequências um tanto estreitas, principalmente no que diz respeito à formação de gênero (seguindo aqui as matrizes de satisfação do desejo heterossexual) e aos possíveis arranjos sexuais entre os sujeitos.

Talvez fosse necessário relembrar que a própria filiação deixada por Édipo não traz qualquer traço de estabilidade, quando pensada segundo a configuração estipulada a partir de seu mito. Antígona, por exemplo, cujo nome já aponta para uma ideia de anti-generation, apesar de emergir no lugar esperado da mãe, está longe de revelar, com clareza, a posição que representa nesse núcleo familiar. Ao reclamar sua ausência de vida, sua morte-em-vida, ela traz consigo importantes questionamentos que não devem ser evitados: quais corpos são passíveis de luto? Em quais condições uma vida é possível de ser vivida? Quem pode desejar o desejo do Estado?

Compreendendo que tanto o parentesco quanto o gênero são construções que apontam para uma prática a ser efetuada, como realizações que só podem ser compreendidas performativamente, talvez seja preciso abandonar uma certa concepção normativa da cultura, fomentada pelo complexo do antigo rei de Tebas. Trata-se de perceber que cada conceito emergente responde a determinados problemas, de modo que, uma vez que se alteram os apuros, as próprias condições históricas exigem a constituição de novos conceitos. É necessário, portanto, seguir o caminho deixado pelas próprias teorizações, descobrindo os novos problemas que as colocam numa zona de turbulência – como indagar-se sobre as relações de parentesco em tempos de dissolução de um determinado modelo de instituição familiar, em meio a novas configurações familiares que despontam no cenário mundial.

De fato, talvez seja necessário o fracasso do Simbólico para que possam emergir novas formas de vida. Mas, até aí, sempre foi mais ou menos claro que era o Real o eixo de boa parte das transformações possíveis. Ou ainda, nas palavras de Moysés Pinto Neto: “A revolução que virá não será a tomada do governo, mas sua morte diante da indiferença dos corpos libertos”.

 
Nota:

[1] Butler, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, Campinas, n. 21, p. 219-260, 2003.

 
Imagem: Esfinge | Grécia | Séc. V ou IV a.C. | escultura em terracota

Matheus Cosmo é estudante do último ano do curso de Letras da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador das práticas do teatro contemporâneo e aprendiz do curso de extensão cultural Subjetividade e Contemporaneidade: uma Leitura Psicanalítica da Cultura, em 2015, na SP Escola de Teatro, São Paulo.