29 de julho de 2015 Giovanna Bartucci

 
Um marco literário pouco conhecido entre nós, o romance de Yevgeny Zamyatin (1884-1937) antecipa os celebrados Admirável mundo novo (1932) e 1984 (1949), de autoria de Aldous Huxley (1894-1963) e George Orwell (1903-1950), respectivamente.

Nascido na Rússia, em 1884, exilado de seu país durante o regime totalitário de Joseph Stalin (1878-1953), o autor de Nós (1921) veio a falecer em Paris, em 1937. Inicialmente um partidário entusiasta da Revolução Russa de 1917, teve vários de seus trabalhos da década de 1910 censurados e confiscados. Autor cuja carreira literária inicia-se antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) com a publicação de diversos contos, novelas e fábulas que têm a vida no limite da subsistência cultural e moral como tema, Zamyatin vê seu romance circular clandestinamente em sua terra natal e ser publicado em língua inglesa pela E. P. Dutton, em 1924.

De fato, a matéria do escritor é a revolta contra um rígido e universalmente imposto código de comportamento “correto”, contra o racionalismo dogmático de seus dias. Zamyatin sustenta a ideia de que os processos de vida tomam forma por meio de um movimento dialético e de que todos os valores estabelecidos são relativos – não há uma revolução última, as revoluções são, afinal, infinitas.

Romance que tem como objeto uma sociedade profundamente controlada na qual a emoção humana é banida do convívio dos homens e cada momento da vida é antecipado por um cronograma, Nós é escrito em forma de diário, com a característica de que seu herói, D-503, escreve para seus antepassados ou para “seres similares aos seus antepassados primitivos e distantes”. Matemático e construtor, moldado por uma sociedade a qual nunca colocou em questão, D-503 relata a descoberta de um mundo até então insuspeito – o mundo interior, o mundo da liberdade e do conhecimento, o mundo da identidade individual. Será, entretanto, por meio de uma paixão violenta e irracional por I-330 que D-503 descobre que tem uma alma – considerada, no Estado Único (One State), uma doença.

“Você não está bem! Aparentemente, você desenvolveu uma alma.”
Uma alma? Aquela palavra estranha, antiga e há muito esquecida. (…)
“É… muito perigoso?”, eu murmurei.
“Incurável.” As tesouras rasgaram o ar.
“Mas… o que quer dizer ‘uma alma’, exatamente? De alguma forma, eu não… não compreendo.”

D-503 não poderia, de fato, compreender. Tendo dominado a Fome algebricamente, o Estado Único lançou seu ataque contra o outro soberano do mundo – o Amor – e, finalmente, essa força elementar também foi submetida a uma ordem matemática, de forma a que cada número tenha o direito a qualquer outro número, assim como a uma mercadoria. Portanto, a possibilidade de uma aventura irracional não deveria existir para o bom cidadão de um Estado bem estruturado e organizado, na medida em que, em Nós, a revolta é uma tentativa de liberar as emoções humanas de seu confinamento em uma estrutura social racional e rígida.

O dilema ético com o qual D-503 se confronta, então, diz respeito à constatação de que liberdade e felicidade são incompatíveis e de que o totalitarismo do Ditador Benevolente (Benefactor) destrói a primeira, tanto quanto assegura a última. Para realizar a vontade do Ditador do Estado Único, no entanto – para quem a vida fora do planejado cálculo científico do Estado benevolente é impossível, uma vez que tal planejamento tem como objetivo tornar os homens felizes –, D-503 terá que se submeter. Sua submissão à autoridade o leva a sujeitar-se à operação – o remédio para o aniquilamento da alma – que extirpa a imaginação e o desejo de revolta, reduzindo todos os cidadãos a “tolos e bobos”. Continuemos…

 
Imagem: Michelle Louise | Sem título | Paraná | 2017 | fotografia

Giovanna Bartucci é psicanalista. Ph. D., é membro efetivo paulista da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). Professora doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduz as seguintes linhas de investigação: Novos Paradigmas e Método – Acerca da Psicanálise no Contemporâneo, e Psicanálise e Estéticas de Subjetivação – Cultura e Constituição de Subjetividade. Autora de Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), Prêmio Jabuti 2014 (categoria Psicologia e Psicanálise, 3º lugar); Fragilidade absoluta – ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta), entre outros. Com traduções de ensaios seus publicadas na França, na Bélgica, no Canadá e na Argentina, atua como assessora e consultora ad hoc para editoras e revistas especializadas.