19 de abril de 2018 Giovanna Bartucci

Os olhos de Sofia brilhavam, à medida que entrava na sala de atendimento. O sorriso, largo, tomava todo o seu rosto. Algo surpreendente, já que Sofia desejava falar de seus fracassos. E de seus impedimentos, neste caso, de seus sintomas. Destituída de sua potência realizadora e, em alguma medida, de sua potência desejante, por uma mãe que ao irmão tudo concedia – situado que estava no lugar de privilegiado –, Sofia enumerava o que havia deixado para trás, seu futuro passado. Instituiu-se, então, o atraso na escolarização, a profissão por conveniência, a dessexualização de seu relacionamento amoroso, o seu “não poder”… A justificativa? Sofia não conseguiria, dizia a mãe, com quem as brigas eram frequentes, não teria capacidade de…

Tendo percebido que havia a possibilidade de estar de alguma forma implicada em sua situação atual, que parecia durar toda uma vida, anos atrás, Sofia resolveu buscar ajuda, iniciar uma análise. Fez algumas entrevistas, se animou, porém decidiu que, de fato, ainda não era o momento ideal. Mas, agora, agora, sim! Afinal, havia encontrado um analista competente, que lhe inspirava confiança e que com certeza teria condições de analisá-la… E… voilà! – fisgado o analista em seu narcisismo. Ganha aqui a neurose.

Sim, insidiosa, a neurose segue, desde sempre, por caminhos tortuosos. O fato é que, tornado pessoa, capaz, em oposição ao colega “não tão capaz assim”, o analista, agora ensurdecido, imagem refletida no espelho, perde a sua condição de escuta, tendo a si entronizado como “sujeito suposto saber”, diria Jacques Lacan (1901-1981).

Com efeito, mais uma vez, reafirma-se uma das condições de instauração de uma psicanálise: a possibilidade de a fala do analisante “abrir-se para o infinito de um desconhecido do que ela é”,[1] sugere Pierre Fédida (1934-2002). Ou seja, trata-se, fundamentalmente, da instalação de uma escuta analítica dada por meio de uma “ruptura da comunicação” – privada que está a linguagem comunicacional de seu uso metafórico e ficcional, inibindo, como vimos alhures, o pensamento associativo.

Claro, Sofia havia se aproximado vagarosamente, como quem sai (e chega) em busca de algo, averiguando o terreno. Sem sofrimento aparente, com certa efusividade expectante, marca sua primeira entrevista e entra na sala de atendimento como quem encontra com amigos para celebrar. De fato, era com os amigos que Sofia se confidenciava, se consultava, e, com ela, eles se confidenciavam. Mas, ensurdecido – “tornado pessoa”, reinstalada a “linguagem comunicacional” –, o analista nada escuta no que respeita ao lugar para o qual foi deslocado, e a resistência, intensíssima, faz o seu trabalho, empurra-o violentamente para fora do tempo e espaço analíticos.

Como observa Jean-Bertrand Pontalis (1924-2013), se “a verdadeira repetição, no sentido freudiano, que a transferência provoca, é o que escapa à representação”,[2] à cena representada e figurada, a repetição transferencial é um agir e não um dizer, ou, então, um dizer que é fazer. Não à toa, janela do sujeito sobre o mundo, naquilo que lhe é impossível representar de outro modo, a “fantasia fundamental”, concorrendo a instituição do advento do sujeito, dá origem ao sintoma, insistência da pulsão em se satisfazer, gozo, de fato onipresente, na neurose.

Constituindo-se, então, no testemunho atual do mundo fantasmático do analisante, cujos objetos investem o analista, a repetição transferencial assume, desse modo, o caráter da forma básica em que se realiza o processo defensivo.[3] Previsível, então, a partida de Sofia, mensagem amorosa endereçada à mãe (?), apenas para reafirmar o seu “não poder”? Se a transferência (expectante) foi o veículo que permitiu a Sofia ir em busca de uma análise, a sua rápida instalação instituiu um muro resistencial ensurdecedor.

 
Notas:

[1] Fédida, Pierre. Clínica psicanalítica: estudos. Tradução: Cláudia Berliner, Martha P. Silva, Regina Steffer. São Paulo: Escuta, 1988, p. 120.
[2] Pontalis, Jean-Bertrand. (1990) A estranheza da transferência. In: A força de atração. Tradução: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p. 88.
[3] Cf. Bartucci, Giovanna. (2001) Entre a compulsão à repetição e a repetição transferencial, inscreve-se a pulsão de morte – Sobre a distinção entre os conceitos de compulsão à repetição e repetição transferencial. In: Fragilidade absoluta: ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade. São Paulo: Planeta, 2006, p. 189-216.

 
Imagem: Mauro Guaranys | Sem Título | [s.l.] | 2006 | ilustração

Giovanna Bartucci é psicanalista. Ph. D., é membro efetivo paulista da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). Professora doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduz as seguintes linhas de investigação: Novos Paradigmas e Método – Acerca da Psicanálise no Contemporâneo, e Psicanálise e Estéticas de Subjetivação – Cultura e Constituição de Subjetividade. Autora de Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), Prêmio Jabuti 2014 (categoria Psicologia e Psicanálise, 3º lugar); Fragilidade absoluta – ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta), entre outros. Com traduções de ensaios seus publicadas na França, na Bélgica, no Canadá e na Argentina, atua como assessora e consultora ad hoc para editoras e revistas especializadas.