2 de setembro de 2015 Giovanna Bartucci

 
Um traço comum tanto a Nós (1921), quanto a Admirável mundo novo (1932), e que tomará um rumo diferenciado em 1984 (1949) à medida que se acentua, diz respeito à caracterização da autoridade.

Como Yevgeny Zamyatin (1884-1937) já havia sugerido, o totalitarismo nega o indivíduo ao conceber que a verdade é uma função do poder e que a fonte de verdade é o poder. No entanto, se na obra do escritor russo, assim como na de Aldous Huxley (1894-1963), o exercício do “totalitarismo benevolente” tem como objetivo aparente a construção de uma sociedade melhor cuja função é servir aos seus cidadãos, em 1984 é do exercício do poder que se trata, da guerra contra a memória, contra o desejo e contra a linguagem como veículo de pensamento.

Quando publicado em 1949, um ano antes de sua morte, aos 46 anos de idade, vítima de tuberculose pulmonar, George Orwell (1903-1950) já era o reconhecido autor de A Revolução dos Bichos (1945), fábula que ocupa-se das contradições do socialismo no poder por meio da caracterização de personagens-porcos que se tornam administradores de uma fazenda.

1984, contudo, uma distopia que retrata o Estado que criou o onipresente “Grande Irmão” (Big Brother) que a todos vê e a todos controla, tem como tema a anulação da identidade individual, a corrupção da linguagem por meio da manipulação ideológica e a perda da memória histórica. Em outras palavras, uma sociedade totalitária, um mundo de tirania, terror e guerra perpétua, em que qualquer desvio de pensamento de seus cidadãos é controlado por meio do “duplipensar” – disciplina mental cujo objetivo é a capacidade de acreditar simultaneamente em duas verdades contraditórias, ou mesmo, uma dinâmica de pensamento que faz com que a realidade seja moldada de acordo com a teoria ou com as decisões pragmáticas do partido. De modo que o “duplipensar” se faz presente também nos nomes dos ministérios que administram Oceania: o Ministério da Paz faz a guerra, o Ministério da Verdade mente, o Ministério do Amor tortura e mata todos os que considera uma ameaça ao sistema. A guerra permanente entre as superpotências também tem como função manter vivo o terror e intacta a sociedade. Os slogans “guerra é paz”, “liberdade é escravidão” e “ignorância é força” eliminam todo dissídio interno em face do perigo interno ou externo.

De modo que o que caracteriza a obra do escritor inglês é a sua condição de captar a “atitude mental” de seu tempo. Em 1948, Orwell “compreendeu que, apesar da derrota do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), a vontade fascista não havia desaparecido; que, longe de ter sido extinta, ela talvez estivesse apenas começando a se afirmar; que a corrupção do espírito e o irreversível vício do poder já estavam havia muito estabelecidos, constituindo aspectos bem conhecidos do Terceiro Reich e da União Soviética stalinista (…) – apenas rascunhos iniciais de um futuro terrível”,[1] resgata Thomas Pychon.

As últimas linhas do romance que consagrou o “Grande Irmão” (Big Brother) talvez sejam o melhor exemplo desta constatação, uma vez que descrevem o momento em que Winston, o herói de 1984, aprisionado na engrenagem de uma sociedade dominada pelo Estado, por fim abre mão de sua própria condição de julgamento, tornando-se um servo dócil e fraco: “Ele (Winston) havia triunfado sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão”.

 
Nota:

[1] Pychon, Thomas. Rumo a 1984. Folha de S.Paulo, São Paulo, 1 jun. 2003. Caderno Mais!, p. 4-8.

 
Imagem: Louise Bougeois | Maman | Ottawa | 1999 | escultura em bronze

Giovanna Bartucci é psicanalista. Ph. D., é membro efetivo paulista da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). Professora doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduz as seguintes linhas de investigação: Novos Paradigmas e Método – Acerca da Psicanálise no Contemporâneo, e Psicanálise e Estéticas de Subjetivação – Cultura e Constituição de Subjetividade. Autora de Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), Prêmio Jabuti 2014 (categoria Psicologia e Psicanálise, 3º lugar); Fragilidade absoluta – ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta), entre outros. Com traduções de ensaios seus publicadas na França, na Bélgica, no Canadá e na Argentina, atua como assessora e consultora ad hoc para editoras e revistas especializadas.