19 de novembro de 2018 Ruth Blay Levisky

 
Configurações vinculares são dinâmicas e mutáveis. Sua constituição é originada pela mescla de aspectos individuais – conscientes e inconscientes advindos do mundo interno dos sujeitos –, heranças familiares e culturais. Diferentes velocidades e tempos acompanham esse caleidoscópio de mutações. Espaços reais e virtuais misturam-se e confundem-se. Relações contemporâneas tornam-se mais superficiais e pouco duradouras.[1]

Alguns autores consideram ainda que “a família representa um elemento em processo de exclusão do discurso social”.[2] Entendo, contudo, que ela não está sendo excluída, e, sim, que sua organização e dinâmica acham-se em transformação, como sempre estiveram, ao longo dos processos históricos. Apesar do novo produzir angústias e resistências, é indiscutível o lugar e a importância que a função da família ocupou e continua ocupando no seio da humanidade; um espaço vincular íntimo, construído por relações com compromissos recíprocos, fundamental para a formação da identidade, transmissão de valores, afetos, histórias e vivências.[3]

O desenvolvimento das neurociências, os impactos das novas tecnologias, exigências e competitividade da vida pós-moderna têm interferido para a mente humana funcionar com outras configurações. Correntes psicanalíticas recentes, representadas por René Kaës (1936- ), Isidoro Berenstein (1932-2011), Janine Puget, entre outros, consideram a intersecção das instâncias intra, inter e transubjetivas como partes primordiais para a formação das subjetividades, dos vínculos familiares e das relações grupais. Diante dessa realidade, nós, psicanalistas, necessitamos criar outras conexões mentais para compreender e interpretar o sujeito contemporâneo, as diversas configurações familiares e descobrir outras maneiras de trabalhar na clínica.

De fato, diferentes questões têm invadido o setting: 1. Fatores externos, como congestionamentos e viagens agendadas pelas empresas, têm dificultado o comparecimento regular dos pacientes às sessões. A reposição hoje é uma questão a ser considerada não só como uma resistência à análise. 2. A comunicação dos pacientes via WhatsApp tem sido uma prática cada vez mais usual, assim como o pagamento das sessões pela internet. Questões de segurança e o desuso do talão de cheques contribuem para essa prática. 3. Demanda por supervisões clínicas e atendimentos pela internet tem aumentado. 4. Solidão, vazio e patologias da contemporaneidade (anorexia, drogadição, suicídios na adolescência) são queixas frequentes, além dos ciúmes de amantes virtuais que criam desafetos e até rompimentos de casamentos.[4] 5. Aumento da taxa de desemprego e maiores oportunidades para a mulher no campo de trabalho por vezes criam uma inversão das funções familiares. 6. Casais que passam pelos métodos de fertilização assistida, casais homoafetivos e famílias reconstituídas buscam terapias com maior frequência.

Com efeito, a experiência tem mostrado que a escuta psicanalítica atual requer do profissional o desenvolvimento de um “setting mental”, flexibilidade, criatividade, espontaneidade e diálogo, para ampliar sua capacidade de observação, sem a perda do sentido do setting analítico. É um desafio para os psicanalistas colaborarem para que pacientes desenvolvam novas maneiras de ser e de estar em família e na sociedade, além de abrir espaço para dar sentido às fantasias e aos conteúdos reprimidos.

Vivemos momentos de mudanças e transformações. A psicanálise também passa por um processo de construção e desconstrução, assim como a identidade do analista. A psicanálise assume nos dias atuais uma necessidade cada vez mais premente de ser uma ferramenta preciosa para a compreensão dos fenômenos do mundo pós-moderno e para encontrar meios para lidar com essas novas situações provocadoras de angústias.

 
Notas:

[1] Bauman, Zygmunt. (1999) Modernidade líquida. Tradução: Plínio Augusto de Souza Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 12.
[2] Brandão, Carlos Rodrigues. O trabalho de saber: cultura camponesa e escola rural. São Paulo: FTD, 1990, p. 14.
[3] Levisky, Ruth Blay. Expressões da intimidade nos vínculos: interferências da cultura. IDE: revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, São Paulo, v. 39, n. 63, p. 41, ago. 2017.
[4] Levisky, Ruth Blay. Amores reais e virtuais: estamos falando da mesma coisa? In: Levisky, Ruth Blay; Gomes, Isabel Cristina; Fernandes, Maria Inês Assumpção(Org.). Diálogos psicanalíticos sobre casal e família. V. 2: As vicissitudes da família atual. São Paulo: Zagodoni, 2014, p. 51.

 
Imagem: Shutterstock | Photo 1 | [s.n.t.] | fotografia

Ruth Blay Levisky é psicóloga graduada pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), com especialização em Psicanálise de Grupo pela Associação Brasileira de Psicoterapia Analítica de Grupo (ABPAG). Graduada também em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (USP), é mestre e doutora na área de Genética Humana e Aconselhamento Genético pela mesma instituição. Membro efetivo e, de 2006 a 2012, do Conselho Diretor da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF), é coordenadora do grupo Vincular desde 2004 e atual presidente da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF).