Configurações vinculares são dinâmicas e mutáveis. Sua constituição é originada pela mescla de aspectos individuais – conscientes e inconscientes advindos do mundo interno dos sujeitos –, heranças familiares e culturais. Diferentes velocidades e tempos acompanham esse caleidoscópio de mutações. Espaços reais e virtuais misturam-se e confundem-se. Relações contemporâneas tornam-se mais superficiais e pouco duradouras.[1]
Alguns autores consideram ainda que “a família representa um elemento em processo de exclusão do discurso social”.[2] Entendo, contudo, que ela não está sendo excluída, e, sim, que sua organização e dinâmica acham-se em transformação, como sempre estiveram, ao longo dos processos históricos. Apesar do novo produzir angústias e resistências, é indiscutível o lugar e a importância que a função da família ocupou e continua ocupando no seio da humanidade; um espaço vincular íntimo, construído por relações com compromissos recíprocos, fundamental para a formação da identidade, transmissão de valores, afetos, histórias e vivências.[3]
O desenvolvimento das neurociências, os impactos das novas tecnologias, exigências e competitividade da vida pós-moderna têm interferido para a mente humana funcionar com outras configurações. Correntes psicanalíticas recentes, representadas por René Kaës (1936- ), Isidoro Berenstein (1932-2011), Janine Puget, entre outros, consideram a intersecção das instâncias intra, inter e transubjetivas como partes primordiais para a formação das subjetividades, dos vínculos familiares e das relações grupais. Diante dessa realidade, nós, psicanalistas, necessitamos criar outras conexões mentais para compreender e interpretar o sujeito contemporâneo, as diversas configurações familiares e descobrir outras maneiras de trabalhar na clínica.
De fato, diferentes questões têm invadido o setting: 1. Fatores externos, como congestionamentos e viagens agendadas pelas empresas, têm dificultado o comparecimento regular dos pacientes às sessões. A reposição hoje é uma questão a ser considerada não só como uma resistência à análise. 2. A comunicação dos pacientes via WhatsApp tem sido uma prática cada vez mais usual, assim como o pagamento das sessões pela internet. Questões de segurança e o desuso do talão de cheques contribuem para essa prática. 3. Demanda por supervisões clínicas e atendimentos pela internet tem aumentado. 4. Solidão, vazio e patologias da contemporaneidade (anorexia, drogadição, suicídios na adolescência) são queixas frequentes, além dos ciúmes de amantes virtuais que criam desafetos e até rompimentos de casamentos.[4] 5. Aumento da taxa de desemprego e maiores oportunidades para a mulher no campo de trabalho por vezes criam uma inversão das funções familiares. 6. Casais que passam pelos métodos de fertilização assistida, casais homoafetivos e famílias reconstituídas buscam terapias com maior frequência.
Com efeito, a experiência tem mostrado que a escuta psicanalítica atual requer do profissional o desenvolvimento de um “setting mental”, flexibilidade, criatividade, espontaneidade e diálogo, para ampliar sua capacidade de observação, sem a perda do sentido do setting analítico. É um desafio para os psicanalistas colaborarem para que pacientes desenvolvam novas maneiras de ser e de estar em família e na sociedade, além de abrir espaço para dar sentido às fantasias e aos conteúdos reprimidos.
Vivemos momentos de mudanças e transformações. A psicanálise também passa por um processo de construção e desconstrução, assim como a identidade do analista. A psicanálise assume nos dias atuais uma necessidade cada vez mais premente de ser uma ferramenta preciosa para a compreensão dos fenômenos do mundo pós-moderno e para encontrar meios para lidar com essas novas situações provocadoras de angústias.
Notas:
[1] Bauman, Zygmunt. (1999) Modernidade líquida. Tradução: Plínio Augusto de Souza Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 12.
[2] Brandão, Carlos Rodrigues. O trabalho de saber: cultura camponesa e escola rural. São Paulo: FTD, 1990, p. 14.
[3] Levisky, Ruth Blay. Expressões da intimidade nos vínculos: interferências da cultura. IDE: revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, São Paulo, v. 39, n. 63, p. 41, ago. 2017.
[4] Levisky, Ruth Blay. Amores reais e virtuais: estamos falando da mesma coisa? In: Levisky, Ruth Blay; Gomes, Isabel Cristina; Fernandes, Maria Inês Assumpção(Org.). Diálogos psicanalíticos sobre casal e família. V. 2: As vicissitudes da família atual. São Paulo: Zagodoni, 2014, p. 51.
Imagem: Shutterstock | Photo 1 | [s.n.t.] | fotografia