27 de agosto de 2018 Emília Estivalet Broide

 
Política e Clínica são termos que podem apresentar variações de significado dependendo do campo discursivo que circulam. Os campos discursivos instituem modos de vida e práticas, demarcam territórios e fronteiras, criam e tecem teorias permitindo diferentes leituras. Portanto, ao levantar como tema Clínica e Política, um vasto campo de análise surge à nossa frente. Inúmeras questões e pontos de vista aparecem. Vamos pegar um fio, um caminho a partir de Sigmund Freud (1856-1939), para pensar a dimensão política da clínica.

Freud, em “Presentación Autobiográfica”,[1] refere que a palavra psicanálise em sua origem designou um método terapêutico, mas que ampliou sua significação tornando-se o nome da ciência dos processos mentais inconscientes. Com isso, ele situa a incidência da experiência clínica na cultura. Por intermédio de suas palavras podemos dizer que o discurso psicanalítico, sustentado pelo analista na sua particular relação com o analisante, ao habitar a polis introduz a dimensão política da clínica psicanalítica na esfera pública, ou seja, introduz a dimensão do inconsciente no laço social.

Ao mesmo tempo, cabe dizer também que as concepções teóricas com as quais cada analista sustenta a práxis que conduz e a forma como lê o mundo sinalizam seu posicionamento ético, ou seja, a forma como o analista concebe o inconsciente e o laço social constitui a política inscrita na sua clínica.

A fala em análise, mediante a associação livre, movida pela transferência põe em relevo o inconsciente, o dizer que irrompe na cadeia dos ditos e que não se fecha a saberes universais e a ideais de normatização. O saber inconsciente não é palpável, nem intencional. Temos notícias dele por seus efeitos e formações: os sonhos, os chistes, os atos falhos que irrompem de modo inesperado. Cada analista, a partir do estilo que lhe é próprio, transmite um saber que pode ser apreendido e, ao mesmo tempo, transmite as suas falhas, as suas marcas, a sua castração. Nessa perspectiva, o saber inconsciente esburaca qualquer forma de padronização imposta pelos ideais da cultura.

A fala não produz efeitos por si só, o percurso de uma análise se faz, então, por uma via que transcende o sentido presente em uma conversa corriqueira.  Fazer trabalhar a palavra e suas ressonâncias, a fim de que o analisante possa fazer a travessia do sofrimento sintomático que o levou à análise, ao seu ponto de enigma ─ a marca distintiva que o constitui ─, é a aposta do analista em sua clínica. O efeito dessa travessia é a constatação da divisão do sujeito, ou seja, aquele que faz uso da palavra e diz “eu penso”, “eu sou”, “eu sofro” é atravessado pelo “estrangeiro” não saber sobre si. Nessa perspectiva o analista dirige a cura, recusando o poder da sugestão implicado na identificação imaginária, que poderia se fazer presente na relação analítica, em prol do manejo da transferência e seus tempos pelo desejo que o orienta.[2]

A experiência analítica, embora extremamente singular, inscreve, desde Freud, uma tradição que se repete e se atualiza a cada análise produzindo efeitos na cultura. A clínica psicanalítica se reinventa a cada vez, colocando em jogo o enigma do inconsciente. Logo, a dimensão política da clínica é o modo de transmissão dos efeitos do inconsciente na análise e na cultura. A transmissão diz respeito àquilo que passa, mas também àquilo que resta, o saber inconsciente e, ainda, os impasses que lhe fazem obstáculo.

Didi-Huberman (1953- )[3] tem uma expressão que nos auxilia a pensar a transmissão dos efeitos do inconsciente como política da clínica: ele fala do “lampejo”; aponta para o fato de que uma experiência íntima, por mais subjetiva e ficcional que seja, pode aparecer como um lampejo, tão logo encontre a justa forma de narrar e transmitir o vivido da experiência.

A transmissão do vivido da experiência, que surge num lampejo, é matéria-prima da clínica psicanalítica. Tomar a “ex-sistência” do inconsciente, como elemento pivô entre campos discursivos a princípio heterogêneos: clínica e política, a fim de fazer frente a qualquer lógica de completude e totalização constitui a dimensão política da clínica na clínica e a dimensão política da clínica na cultura.

 
Notas:

[1] Cf. Freud, Sigmund. (1925) Presentación Autobiográfica. (1955) Sigmund Freud Obras Completas. Traducción directa del alemán: José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989, v. XX, p. 1-70.
[2] Cf. Lacan, Jacques. (1958) A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 591- 652.
[3] Cf. Didi-Huberman, Georges. (2009) Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução: Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

 
Imagem: Banksy | Flower Thrower | Londres | 2003 | grafitti

Emília Estivalet Broide é psicanalista, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Laboratório de Psicanálise e Sociedade da mesma instituição. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA. Consultora e analista institucional na área da Saúde e da Assistência Social. Autora de A supervisão como interrogante da práxis analítica: desejo de analista e a transmissão da psicanálise (Escuta, 2017), entre outros.