15 de fevereiro de 2018 Giovanna Bartucci

Há pelo menos duas décadas e meia, a filósofa e psicanalista Julia Kristeva (1941- ) já havia se interrogado a respeito do que pedem ao analista os “analisantes contemporâneos” – prenunciando, na passagem do século XX para o XXI, a mudança paradigmática à qual estamos todos sendo submetidos pelos tempos que correm. Em sintonia com a proposição de Elisabeth Roudinesco[1] (1944- ) de que a contemporaneidade se caracterizaria pelo paradigma da depressão – forma suavizada da antiga melancolia – em substituição ao paradigma da histeria, operante na modernidade – em que a vida psíquica se configuraria como um jogo de forças que se promovem e se inibem umas às outras, tendo como base o confronto entre o mesmo e o outro –, a tentativa de Kristeva foi a de nomear uma demanda que tem se instalado em nossa clínica cotidiana nas últimas décadas.

Com efeito, se na atualidade as mudanças de enquadre, por exemplo, no que diz respeito à redução do número de sessões semanais com as quais se é possível trabalhar, colocam questões metodológicas ao analista, quando instaurada uma psicanálise, ou mesmo um trabalho que a anteceda, constatamos que o que os novos analisantes pedem ao analista é, de fato, a constituição de um “novo aparelho psíquico”. Entretanto, dirá Kristeva, “a elaboração deste passará por uma revalorização da imagem no seio da transferência, antes de abrir-se para a linguagem do relato fantasmático”,[2] sustentado, então, pela livre associação, imposta pela regra fundamental.

O fato é que, se para Sigmund Freud (1856-1939) a psique (ou o aparelho psíquico) equivale a uma construção teórica em nada redutível ao corpo, submetidos que estão às forças pulsionais, observável nas estruturas da linguagem, e (re)produtora de sintomas na transferência, as implicações da afirmação acima, especialmente no que diz respeito ao lugar e à função do psicanalista na clínica contemporânea,[3] são profundas. Fundamentalmente porque a revalorização da imagem no seio da transferência situa o imaginário no centro de uma clínica que se diferencia exatamente pela dificuldade – presente muito frequentemente no longo início de suas análises – dos analisantes de simbolizarem; a linguagem, instrumento princeps do trabalho analítico, se mostrando aqui insuficiente.

Casos difíceis, funcionamento-limite, as análises desses “novos analisantes”, no entanto, são caracterizadas por um investimento profundo, na medida em que estão disponíveis, de fato, para a experiência psicanalítica. Mais do que isto, apostam todas as fichas nela, e a sua expectativa é a de que seus analistas não “apenas” escutem, mas “atuem” de maneira a reconstruir, refazer, “reparar” aquilo que não foi “constituído”.

Era essa a expectativa de João. Durante anos a fio, qualquer movimento, tom de voz, palavra ou gesto – até mesmo por ele identificáveis – eram indícios de algo que lhe era impossível nomear. E a mim imputava o seu sofrimento. Não à toa, aqui a intensidade da experiência transferencial – frequentemente confundida com o que denominamos “reação terapêutica negativa”, ou seja, um certo tipo de resistência a mudança – explicita, na verdade, que o aspecto econômico da transferência por meio do qual a pulsão de morte desligada, não erotizada, se dá a ver, situado que está no primeiro plano da experiência psíquica, é da ordem da apresentação (Darstellung), e irrompe aqui não no real, claro, mas no registro do imaginário.[4]

Com efeito, se a história que concerne ao psicanalista é a das vicissitudes pulsionais e identificatórias, é provável que a experiência acima – ou seja, a experiência de uma intensidade transferencial tal que se faz presente, junto ao analista, por meio do registro do imaginário – não tenha lugar. Ou a nós caberia nos dispormos a escutar nossos “analisantes contemporâneos” do lugar de “duplo”.

Não nos restam muitas opções. Sim, Jean-José Baranes[5] já sugeriu anteriormente que a ambiguidade característica da figura do duplo, ou seja, no momento mesmo em que se mostra presente, revela-se como pertencente a um além incessível, é o lugar da estranheza e dessa relação de limite entre o mesmo e o outro. Afinal, será apenas deste lugar – do lugar da estranheza e dessa relação de limite entre mesmo e diferente – que o psicanalista poderá trabalhar na instituição de um “novo aparelho psíquico”.

Notas:

[1] Cf. Roudinesco, Elisabeth. (1999) Por que a psicanálise? Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
[2] Kristeva, Julia. (1993) As novas doenças da alma. Tradução: Joana Angélica Dávila Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 17.
[3] Cf. Bartucci, Giovanna. Maria Madalena e Édipo Complexo: São novas narrativas necessárias na psicanálise contemporânea? Percurso – Revista de psicanálise, São Paulo, ano XV, n. 34, p. 37-48, 2005. Disponível em: <http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=329&ori=autor&letra=B>.
[4] Cf. Bartuccci, Giovanna. (1999) Entre o mesmo e o duplo, inscreve-se a alteridade. Psicanálise freudiana e escritura borgiana. In: Fragilidade absoluta: ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade. São Paulo: Planeta, 2006, p. 135-157.
[5] Cf. Baranes, Jean-José. (1995) Double Narcissique et Clivage du Moi. In: Couvreur, Catherine et al. Le Double. Paris: PUF, 1997, p. 39-53.

Imagem: Cultura no Divã | Freud (I) | São Paulo | 2018 | fotomontagem

Giovanna Bartucci é psicanalista. Ph. D., é membro efetivo paulista da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF). Professora doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduz as seguintes linhas de investigação: Novos Paradigmas e Método – Acerca da Psicanálise no Contemporâneo, e Psicanálise e Estéticas de Subjetivação – Cultura e Constituição de Subjetividade. Autora de Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), Prêmio Jabuti 2014 (categoria Psicologia e Psicanálise, 3º lugar); Fragilidade absoluta – ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta), entre outros. Com traduções de ensaios seus publicadas na França, na Bélgica, no Canadá e na Argentina, atua como assessora e consultora ad hoc para editoras e revistas especializadas.